O Meu Irmão Herdou a Casa dos Nossos Pais: Agora Cobra-me Renda Como se Fosse Uma Estranha
— Não percebes, Leonor? Não posso simplesmente deixar-te ficar aqui sem pagar nada. — A voz do meu irmão, Miguel, ecoava fria pela sala onde, em tempos, a nossa mãe nos chamava para jantar.
Olhei para ele, sentada no velho sofá que ainda cheirava a lavanda e a tardes de verão. O mesmo sofá onde, em miúda, me enroscava ao colo da mãe quando tinha pesadelos. Agora, sentia-me como uma intrusa na minha própria casa.
— Miguel, isto é o nosso lar… — tentei argumentar, mas ele cortou-me a palavra com um gesto brusco.
— Era o nosso lar. Agora é minha responsabilidade. Preciso do dinheiro. — O tom dele era duro, quase impessoal. — Se não quiseres pagar, tens de sair.
As palavras dele caíram sobre mim como uma avalanche. Lembrei-me de quando éramos crianças e fazíamos corridas pelo corredor, rindo até perder o fôlego. Lembrei-me das noites em que chorámos juntos quando o pai ficou doente, das promessas sussurradas de nunca nos abandonarmos.
A morte dos nossos pais tinha-nos apanhado de surpresa. Primeiro a mãe, com aquele cancro traiçoeiro que a levou em menos de um ano. Depois o pai, que nunca recuperou da perda e se foi apagando aos poucos. No funeral, Miguel abraçou-me e prometeu: “Vamos ficar juntos nisto.” Acreditei nele.
Quando chegou a altura da partilha dos bens, Miguel ficou com a casa. Disse que era mais fácil assim, que eu vivia em Lisboa e ele precisava de um sítio para criar os filhos. Aceitei sem protestar — afinal, era o meu irmão mais velho, sempre tão responsável. Nunca pensei que um dia me visse obrigada a pedir-lhe abrigo.
Mas a vida trocou-me as voltas. O meu casamento desfez-se num mar de discussões e silêncios. O Pedro foi-se embora com outra mulher e eu fiquei sozinha, com uma mala de roupa e um coração despedaçado. Voltei à terra natal porque não tinha para onde ir. Bati à porta da casa onde cresci, esperando encontrar consolo.
No início, Miguel recebeu-me bem. A cunhada, Sofia, foi simpática mas distante. Os meus sobrinhos olhavam para mim com curiosidade e algum desconforto — afinal, eu era a tia que só aparecia no Natal.
Durante semanas vivi ali como uma sombra, tentando não incomodar ninguém. Arrumei o quarto antigo, limpei o pó dos móveis e tentei ajudar nas tarefas da casa. Mas sentia o peso do silêncio entre mim e Miguel. Ele evitava conversas longas, respondia-me com monossílabos.
Até ao dia em que me chamou à sala e me apresentou um papel: um contrato de arrendamento.
— Não é justo — protestei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair. — Sempre foi a nossa casa!
— Agora é minha — respondeu ele, sem olhar para mim. — Tenho contas para pagar. A Sofia está grávida outra vez. Não posso sustentar-te.
A humilhação queimou-me por dentro. Saí da sala tropeçando nas palavras que queria dizer e não conseguia. Fui até à cozinha e sentei-me à mesa onde tantas vezes vi a mãe amassar pão. O cheiro do café ainda pairava no ar, misturado com o aroma doce das memórias.
Nessa noite não dormi. Ouvi os passos de Miguel no corredor, os risos abafados da Sofia ao telefone, o choro do bebé no quarto ao lado. Senti-me uma estranha na minha própria história.
No dia seguinte liguei à minha melhor amiga, Mariana.
— Não aguento mais — desabafei entre soluços. — Ele trata-me como uma inquilina qualquer!
— Tens de te impor — aconselhou ela. — Ou então sai daí antes que te destruas por dentro.
Mas para onde iria? O dinheiro era pouco, arranjar trabalho na vila era quase impossível e Lisboa parecia tão distante agora…
Os dias passaram lentos e pesados. Miguel evitava cruzar-se comigo. A Sofia começou a deixar recados passivo-agressivos sobre as tarefas domésticas: “Leonor, podias lavar a loiça”, “Leonor, não te esqueças do lixo”. Senti que estava a mais.
Uma tarde ouvi-os a discutir na cozinha:
— Ela não pode ficar aqui para sempre! — dizia Sofia num sussurro irritado.
— Eu sei… mas é minha irmã…
— E nós temos uma família! Preciso do espaço para o bebé!
Fugi para o jardim antes que me vissem chorar. Sentei-me na relva húmida junto ao limoeiro que o pai plantou quando nasci. O cheiro cítrico misturava-se com as lágrimas quentes no meu rosto.
Lembrei-me das tardes em que ajudava a mãe a colher limões para fazer bolo. Das histórias que o pai contava sobre os seus tempos de juventude em Lisboa. Da promessa silenciosa de que aquela casa seria sempre um porto seguro.
Agora era apenas um edifício frio, cheio de fantasmas e ressentimentos.
Nessa noite tomei uma decisão: ia procurar trabalho, mesmo que fosse a limpar casas ou servir cafés no restaurante da vila. Não ia dar-lhes o gosto de me verem quebrar.
Comecei a sair cedo todos os dias à procura de anúncios nos cafés e padarias. Bati à porta do restaurante do senhor António e pedi emprego.
— Não tenho muito para oferecer — disse ele com um sorriso triste — mas preciso de alguém para ajudar na cozinha ao fim-de-semana.
Aceitei sem hesitar. Os primeiros dias foram duros: mãos queimadas da loiça quente, pés doridos das horas em pé. Mas pelo menos sentia-me útil.
Miguel mal me dirigia a palavra quando chegava a casa exausta à noite. A Sofia limitava-se a lançar olhares de desdém.
Um sábado à noite cheguei mais tarde do trabalho e encontrei as minhas coisas empilhadas junto à porta do quarto.
— O que é isto? — perguntei, sentindo o coração acelerar.
Miguel apareceu no corredor com ar cansado:
— A Sofia precisa do quarto para o bebé…
— E eu? Onde fico?
Ele encolheu os ombros:
— Podes dormir na sala… ou talvez seja melhor procurares outro sítio.
A raiva subiu-me à garganta como fogo:
— Depois de tudo o que passámos juntos… depois de tudo o que fiz por ti… é assim que me tratas?
Ele desviou o olhar:
— Não tenho escolha…
Peguei nas minhas coisas e saí sem olhar para trás. Passei aquela noite no banco do jardim da vila, enrolada no casaco velho do pai.
Na manhã seguinte fui ter com Mariana e pedi-lhe abrigo por uns dias. Ela recebeu-me de braços abertos e lágrimas nos olhos:
— Isto não é justo, Leonor…
Durante semanas procurei um quarto barato para alugar. Arranjei mais horas no restaurante e comecei a juntar algum dinheiro. Aos poucos fui reconstruindo a minha vida longe daquela casa cheia de memórias dolorosas.
Às vezes passo pela rua onde cresci e olho para as janelas iluminadas da antiga casa dos meus pais. Pergunto-me se Miguel alguma vez sente remorsos pelo que fez. Se alguma vez pensa nas promessas que fizemos em crianças.
Hoje vivo num pequeno apartamento alugado na vila vizinha. Não tenho muito, mas tenho paz — algo que há muito não sentia.
Às vezes pergunto-me: será que as casas guardam mesmo as nossas memórias ou somos nós que lhes damos significado? E será possível perdoar quem nos tira o chão sem olhar para trás?