O Meu Genro Achava Que o Negócio de Família Era Só Para Inglês Ver

— Não percebo, Joana! O teu pai está sempre em cima de mim, como se eu fosse um miúdo acabado de sair da escola! — O Rui atirou as palavras para o ar, a voz carregada de frustração, enquanto eu fingia não ouvir do outro lado da porta da cozinha. Oiço a minha filha suspirar, cansada. — Rui, tu sabias ao que vinhas. O negócio do meu pai não é só aparecer e receber ao fim do mês.

Senti o peito apertar. Não era isto que tinha sonhado para ela. Quando a Joana nos apresentou o Rui, há dois anos, ele parecia um rapaz trabalhador, simpático, daqueles que cumprimentam os vizinhos e ajudam a pôr as mesas nos jantares de família. Mas agora, depois do casamento e da entrada dele na padaria da família — a Padaria Martins, fundada pelo meu avô em 1952 — tudo mudou.

O Rui chegava tarde, saía cedo e passava mais tempo ao telemóvel do que a atender clientes. Uma vez apanhei-o a jogar no telemóvel atrás do balcão enquanto a fila crescia até à porta. Fiquei sem saber se gritava ou chorava. Mas engoli em seco e fui eu mesma atender os clientes, como sempre fiz.

Naquela noite, depois de fechar a padaria, sentei-me com o meu marido, o António. Ele olhou-me com aquele olhar cansado de quem já viu demasiadas madrugadas a amassar pão.

— Isto assim não pode continuar, Maria. O Rui não percebe o que é trabalhar aqui. Não é só um emprego, é a nossa vida.

— Eu sei… mas se falarmos com ele, a Joana vai ficar magoada. Ela está tão feliz…

— Feliz? Não viste como ela anda? Sempre tensa, sempre a tentar agradar aos dois lados. — O António passou a mão pelo cabelo grisalho. — Temos de fazer alguma coisa.

No dia seguinte, decidi enfrentar o Rui. Esperei até ele chegar — vinte minutos atrasado — e chamei-o ao escritório.

— Rui, precisamos de conversar. — A minha voz saiu mais firme do que esperava.

Ele sentou-se à minha frente, com aquele ar de quem está prestes a ouvir um sermão.

— Aqui não é só aparecer e receber um ordenado. Todos trabalhamos duro. Até a Joana, quando era miúda, ajudava a varrer o chão antes de ir para a escola. Não podemos dar-te privilégios só porque és da família.

Ele revirou os olhos.

— Mas eu sou da família agora! Não devia ser diferente?

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Justamente por seres da família é que tens de dar o exemplo! Não quero que os outros empregados pensem que aqui há filhos e enteados.

Ele levantou-se abruptamente.

— Isto é injusto! A Joana disse-me que ia ser diferente…

Fiquei sem palavras. Era isto que ele pensava? Que casar com a minha filha lhe dava direito a uma vida fácil?

Nessa noite, ouvi-os discutir no quarto deles. A Joana chorava baixinho. O Rui falava alto demais:

— O teu pai trata-me como se eu fosse um estranho! Eu sou teu marido!

No dia seguinte, a Joana apareceu na padaria com os olhos inchados. Aproximou-se de mim enquanto eu preparava os croissants para o forno.

— Mãe… o Rui não está feliz aqui. Ele sente que nunca vai ser aceite.

Larguei a massa e limpei as mãos ao avental.

— Joana, nós só queremos que ele trabalhe como todos nós. Não é pedir muito.

Ela olhou para mim com uma tristeza profunda.

— Eu sei… mas ele não está habituado. Na casa dele nunca lhe pediram nada. Sempre teve tudo feito…

Suspirei. Lembrei-me dos pais do Rui: gente abastada de Cascais, sempre com empregados em casa e férias no Algarve todos os verões. Talvez tínhamos sido ingénuos ao pensar que ele se adaptaria ao nosso mundo.

Os dias passaram e o ambiente ficou cada vez mais pesado. Os empregados começaram a comentar:

— O genro da patroa só faz asneiras…

— Se fosse eu já estava na rua!

O António começou a perder a paciência. Uma manhã, encontrou o Rui a dormir no armazém durante o turno da noite.

— Rui! Achas isto normal? — gritou-lhe.

O Rui levantou-se sobressaltado.

— Estou cansado! Isto não é vida!

O António perdeu as estribeiras:

— Então vai-te embora! Aqui ninguém está preso!

O Rui saiu disparado pela porta fora. A Joana foi atrás dele, mas voltou sozinha meia hora depois.

Nessa noite houve uma reunião de família. Sentámo-nos todos à mesa da cozinha: eu, o António, a Joana e o Rui — este último com cara fechada e braços cruzados.

— Rui — comecei eu — queremos saber se queres mesmo fazer parte disto ou não. Porque isto não é só um emprego: é uma responsabilidade para connosco e para com todos os que aqui trabalham.

Ele ficou calado durante uns segundos eternos. Depois explodiu:

— Eu nunca pedi isto! Só aceitei porque achei que ia ser fácil! Mas vocês são obcecados por este negócio! Nem sabem viver!

A Joana desatou a chorar.

— Rui… por favor…

Ele levantou-se e saiu porta fora sem olhar para trás.

Durante dias não tivemos notícias dele. A Joana andava como um fantasma pela casa e pela padaria. Eu sentia-me dividida entre o alívio e a culpa: teria sido demasiado dura? Teria destruído o casamento da minha filha?

Uma semana depois, o Rui voltou. Entrou na padaria às seis da manhã, olheiras fundas e ar derrotado.

— Quero tentar outra vez — disse simplesmente. — Mas preciso de ajuda… nunca trabalhei assim antes.

O António olhou para mim e eu para ele. Havia ali uma sinceridade nova nos olhos do Rui.

Começámos devagarinho: ensinei-lhe como se faz massa-mãe, como se atende um cliente idoso com paciência, como se limpa tudo no fim do dia sem deixar rasto de farinha nos cantos. O António mostrou-lhe as contas e explicou-lhe porque cada cêntimo conta num negócio pequeno como o nosso.

Aos poucos, o Rui foi mudando. Começou a chegar cedo, a sorrir aos clientes e até inventou uma nova receita de pão de centeio com sementes que fez sucesso no bairro. Os empregados começaram a respeitá-lo — alguns até lhe pediam conselhos.

A Joana voltou a sorrir como antes.

Mas nunca mais esqueci aqueles dias negros em que quase perdi a minha filha para salvar um negócio… ou será que quase perdi o negócio para salvar a minha filha?

Às vezes pergunto-me: quantas famílias se desmoronam por causa das expectativas e dos silêncios? Será possível amar alguém sem nunca lhe pedir nada em troca?