O Meu Filho Não Vai Ser Escravo de Casa: Um Drama Familiar Português
— O Rui não nasceu para andar a lavar pratos, Vitória! — A voz da Dona Amélia ecoou pela cozinha, cortando o silêncio como uma faca afiada. Eu estava de costas, a tentar controlar as mãos que tremiam enquanto enxaguava os copos do almoço de domingo. O Rui, meu marido, fingia não ouvir, entretido com o telemóvel na sala, mas eu sabia que ele ouvia cada palavra.
Desde que me casei com o Rui, há três anos, que a sombra da Dona Amélia pairava sobre a nossa casa. Ela morava no andar de cima, num daqueles prédios antigos de Lisboa, onde as paredes parecem feitas de papel. Quando nos mudámos para cá, pensei que seria bom ter família por perto, mas rapidamente percebi que a proximidade era uma faca de dois gumes.
No início, tentei agradar. Fazia bolos para ela, convidava-a para jantar, ouvia as suas histórias sobre como o Rui era um menino exemplar, sempre limpo, sempre bem vestido, nunca levantava a voz. Mas bastou eu sugerir que ele ajudasse a pôr a mesa para sentir o olhar dela, frio como mármore, pousado em mim.
— Na minha casa, o homem não mexia numa palha — disse ela uma vez, enquanto eu dobrava roupa na sala. — O meu marido trabalhava o dia inteiro, chegava e tinha tudo pronto. Era assim que devia ser.
Eu sorri, sem responder. Mas por dentro, sentia-me a encolher. O Rui, por sua vez, parecia dividido entre dois mundos: o da mãe, onde tudo lhe era feito, e o nosso, onde eu queria partilhar as responsabilidades. No início, ele até tentava ajudar. Lavava a loiça, aspirava o chão, mas bastava a mãe aparecer para ele largar tudo e sentar-se no sofá, como se fosse um príncipe à espera de ser servido.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia tirar o lixo, sentei-me na cama e desatei a chorar. O Rui entrou no quarto e ficou parado à porta, sem saber o que fazer.
— O que é que se passa agora? — perguntou, já com aquele tom cansado.
— Sinto que estou sozinha nisto tudo, Rui. Não é justo. Não sou tua empregada.
Ele suspirou, passou as mãos pelo cabelo.
— A minha mãe sempre fez tudo lá em casa. Não estou habituado…
— Mas agora és casado comigo! — gritei, sem conseguir controlar a raiva. — Isto é uma parceria, não uma prisão!
Ele saiu do quarto sem dizer mais nada. Ouvi-o a ligar à mãe, a voz baixa, mas percebi o suficiente: “A Vitória está impossível.”
No dia seguinte, Dona Amélia apareceu à porta com um tupperware de arroz de pato e um sorriso venenoso.
— Olha, trouxe-te o jantar. Assim não tens de te cansar tanto — disse, olhando-me de cima a baixo.
Agradeci, mas senti-me humilhada. Era como se ela dissesse: “Não és suficiente para o meu filho.”
As semanas passaram e o ambiente em casa tornou-se insuportável. O Rui começou a passar mais tempo fora, dizia que era trabalho, mas eu sabia que era para evitar discussões. Eu, por outro lado, sentia-me cada vez mais sozinha, presa numa rotina que não era minha.
Um sábado à tarde, decidi confrontar a Dona Amélia. Subi as escadas com o coração aos pulos e bati à porta dela. Ela abriu, surpresa.
— Precisamos de falar — disse, tentando manter a voz firme.
Sentámo-nos na sala dela, rodeadas de fotografias do Rui em criança. Ela olhava para mim como se eu fosse uma intrusa.
— Dona Amélia, eu gosto muito do seu filho. Mas não posso continuar assim. Preciso que perceba que ele tem de ajudar em casa. Não é só minha responsabilidade.
Ela riu-se, um riso seco.
— Tu é que escolheste casar com ele. Sabias como ele era. Agora aguenta.
— Não é justo — insisti. — Isto não é vida para ninguém.
Ela levantou-se, impaciente.
— O meu filho não vai ser escravo de casa! Se queres igualdade, vai trabalhar mais. Mas não peças ao Rui para fazer o que não é de homem.
Saí dali a tremer. Pela primeira vez, percebi que talvez nunca fosse suficiente para ela. E talvez o Rui nunca tivesse coragem de se impor.
Nessa noite, fiz as malas. O Rui chegou tarde e encontrou-me sentada na sala, com as malas ao lado.
— Vais embora? — perguntou, incrédulo.
— Não aguento mais, Rui. Ou mudamos isto, ou não consigo continuar.
Ele ficou em silêncio. Pela primeira vez, vi lágrimas nos olhos dele. Sentou-se ao meu lado e pegou-me na mão.
— Eu amo-te, Vitória. Mas não sei como mudar. Sempre vivi assim…
— Aprende comigo. Ou então perdemo-nos os dois.
Ficámos ali sentados, em silêncio, durante muito tempo. No dia seguinte, ele levantou-se cedo e foi comigo ao supermercado. Pela primeira vez, vi-o pegar no aspirador sem eu pedir. A Dona Amélia apareceu à hora do almoço e ficou chocada ao vê-lo a cozinhar.
— O que é isto? — perguntou, furiosa.
— Mãe, chega. Aqui em casa as coisas vão ser diferentes — respondeu ele, com uma firmeza que eu nunca lhe tinha visto.
Ela saiu porta fora, batendo com força. Durante semanas, não nos falou. O Rui ficou triste, mas manteve-se firme. Aos poucos, fomos encontrando o nosso equilíbrio. Não foi fácil. Houve dias em que pensei em desistir. Mas também houve dias em que senti que estávamos finalmente a construir uma vida juntos, à nossa maneira.
Hoje, olho para trás e pergunto-me: quantas famílias se destroem por causa das expectativas dos outros? Quantas mulheres continuam a carregar sozinhas o peso de uma tradição que já não faz sentido? Será que algum dia vamos conseguir libertar-nos destes papéis impostos e viver, simplesmente, como parceiros? E vocês, já passaram por algo assim?