O Meu Apartamento, As Suas Expectativas: Quando a Família Ultrapassa os Limites
— Mariana, por favor, não faças isto à tua família. — A voz da minha mãe tremia do outro lado da linha, carregada de lágrimas e de uma urgência que me apertava o peito.
Eu estava sentada no sofá do meu pequeno T2 em Benfica, com as mãos geladas e o telemóvel colado ao ouvido. O relógio marcava quase meia-noite, mas o sono tinha fugido há horas. O pedido dela ecoava na minha cabeça desde o jantar de domingo, quando tudo começou a desmoronar.
— Mãe, não percebes? Este apartamento é a única coisa que é verdadeiramente minha! — respondi, tentando controlar a voz para não gritar. — Trabalhei anos para isto. Fiz serões, recusei férias, poupei cada cêntimo…
Ela soluçou do outro lado. — Mas o Rui está numa situação tão difícil, filha. A Andreia está grávida e eles não têm para onde ir. Tu és solteira, tens tempo para recomeçar. Não podes ajudar o teu irmão?
A palavra “ajudar” soava como uma sentença. Desde pequena que me ensinaram que família vem sempre em primeiro lugar. Mas até onde vai esse “primeiro lugar”? Até ao ponto de abdicar do meu próprio lar?
O Rui nunca foi fácil. Sempre teve um dom para se meter em sarilhos e sair deles à custa dos outros. Quando conheceu a Andreia, todos percebemos que ela era diferente das namoradas anteriores: ambiciosa, determinada, mas também fria e calculista. No início, tentei dar-lhe o benefício da dúvida. Mas bastaram alguns meses para perceber que ela olhava para mim como se eu fosse um obstáculo.
No jantar de domingo, enquanto eu servia o arroz de pato, a Andreia lançou o tema com a subtileza de um elefante numa loja de porcelanas.
— Mariana, já pensaste em mudar-te para um sítio mais pequeno? Este apartamento é tão grande para ti sozinha… — disse ela, sorrindo com aqueles dentes perfeitos.
O Rui pigarreou e olhou para mim de lado. — Era só até nos orientarmos. A Andreia está quase a ter o bebé e estamos mesmo aflitos.
A minha mãe baixou os olhos para o prato. O meu pai ficou em silêncio, como sempre fazia quando as coisas ficavam desconfortáveis.
— Não é assim tão simples… — comecei eu, mas fui interrompida pela Andreia.
— Mariana, tu és tão generosa! Sempre foste a irmã mais sensata. Sabes que isto seria só uma fase.
Senti um nó na garganta. O jantar terminou num silêncio pesado. Quando cheguei a casa, chorei como há muito não chorava.
Agora, com a minha mãe ao telefone, sentia-me encurralada.
— Mãe, porque é que sou sempre eu a ceder? O Rui já teve tantas oportunidades… — sussurrei.
Ela suspirou. — Porque tu és forte, filha. Ele precisa mais do que tu.
Desliguei sem dizer adeus. Passei a noite em claro, a olhar para o teto e a pensar em todas as vezes que pus os outros à frente de mim mesma. Lembrei-me de quando era miúda e dava os meus brinquedos ao Rui porque ele chorava até conseguir o que queria. Lembrei-me das vezes em que fiquei em casa a estudar enquanto ele saía com os amigos e depois pedia ajuda para passar nos exames.
No dia seguinte, fui trabalhar como um fantasma. Os meus colegas notaram logo.
— Estás bem, Mariana? — perguntou a Sofia, a minha colega de secretária.
— Só problemas de família… — murmurei.
Ela sorriu com compreensão. — Às vezes temos de pensar em nós próprias. Não te esqueças disso.
As palavras dela ficaram comigo todo o dia. Quando cheguei a casa, encontrei uma mensagem do Rui: “Precisamos falar.” Respirei fundo e liguei-lhe.
— Então? — atendeu ele sem rodeios.
— Rui, não posso dar-te o apartamento. Preciso dele tanto quanto tu precisas de um teto para a tua família.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— A Andreia vai ficar furiosa — disse finalmente. — E a mãe também não vai perdoar-te tão cedo.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Rui, já chega! Sempre fui eu a ceder! Porque é que nunca és tu? Porque é que nunca tentas resolver as tuas próprias crises?
Ele desligou na minha cara.
Nos dias seguintes, as coisas pioraram. A minha mãe deixou de me falar. O meu pai mandou-me uma mensagem curta: “A tua mãe está muito triste.” A Andreia publicou no Facebook uma indireta venenosa sobre “famílias egoístas” e “pessoas que só pensam em si”.
Senti-me sozinha como nunca antes. Os jantares de família passaram a ser sem mim. Os meus pais começaram a visitar o Rui e a Andreia todos os fins-de-semana no pequeno T1 arrendado nos subúrbios de Lisboa.
Uma noite, bati à porta dos meus pais para tentar conversar. A minha mãe abriu-me a porta com os olhos vermelhos.
— Vieste pedir desculpa? — perguntou ela sem rodeios.
— Não vim pedir desculpa por proteger aquilo que é meu — respondi com firmeza pela primeira vez na vida.
O meu pai apareceu no corredor, hesitante.
— Mariana… isto está a destruir-nos — murmurou ele.
— Não fui eu quem começou isto — respondi baixinho.
A minha mãe virou-me as costas e foi para a cozinha. Sentei-me no sofá da sala onde cresci e olhei à volta: as fotografias antigas, os bibelôs da infância, tudo parecia agora distante e estranho.
O Rui nunca mais me falou diretamente. Soube pelo Facebook que o bebé nasceu prematuro mas saudável. Vi fotos do meu sobrinho sem nunca ter sido convidada para conhecê-lo.
Durante meses vivi num limbo: sentia culpa por não ter cedido, mas também orgulho por finalmente ter defendido os meus limites. Comecei a sair mais com amigos, inscrevi-me num curso de fotografia e decidi redecorar o apartamento à minha maneira — pela primeira vez sem pensar se agradava aos outros ou não.
Um dia, recebi uma carta da minha mãe. Não era um pedido de desculpas nem um convite para jantar; era apenas uma folha com poucas linhas:
“Espero que estejas bem. O Rui está melhor agora. O bebé chama-se Miguel. Talvez um dia possamos conversar sem mágoas.”
Li aquelas palavras vezes sem conta. Chorei outra vez — mas desta vez foi um choro diferente: não era só tristeza; era também alívio e esperança.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que os outros decidam por nós? Quantas vezes confundimos amor com sacrifício cego? Será possível reconstruir pontes sem voltar atrás nos nossos próprios limites?
E vocês? Até onde iriam por amor à família?