O Meu Aniversário Não É da Família – A Rebelião de Uma Mulher Portuguesa Contra as Expectativas Familiares

— Maria, não podes estar a falar a sério! — A voz do António ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. Eu estava de costas para ele, as mãos a tremerem ligeiramente enquanto lavava a chávena. O relógio marcava quase meia-noite. Amanhã faria cinquenta anos.

Respirei fundo, tentando controlar o nó na garganta. — Estou farta, António. Todos os anos é a mesma coisa: a tua mãe, os teus irmãos, os primos, aquela confusão toda cá em casa. Nunca ninguém me pergunta o que eu quero. Este ano quero algo diferente. Quero estar sozinha. Quero ir à praia, ler um livro, ouvir o mar. Só isso.

Ele bufou, incrédulo. — Mas isso é egoísmo, Maria! A família conta contigo! A minha mãe já está a preparar o bolo, a tua irmã traz o arroz de pato… Como é que lhes vais dizer que não há festa?

Virei-me para ele, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — E eu? Quando é que alguém pensa em mim? Sabes há quanto tempo não faço nada só para mim? Nem me lembro da última vez que tive um dia em paz.

O silêncio dele foi mais pesado do que qualquer grito. Subi para o quarto, fechei a porta e sentei-me na cama. O telemóvel vibrava com mensagens do grupo da família: “Amanhã vamos cedo!”, “Maria, queres que leve as sobremesas?”, “Não te esqueças das cadeiras extra!”. Apaguei o ecrã e deixei-o cair na almofada.

Lembrei-me da infância em Setúbal, das festas barulhentas em casa dos meus pais. Sempre adorei ter gente à volta, mas agora… agora sentia-me sufocada. Desde que casei com o António, parecia que o meu aniversário era só mais uma desculpa para juntar toda a gente — menos eu.

Na manhã seguinte, acordei antes do sol nascer. Vesti-me devagar, como se cada peça de roupa fosse uma armadura. Deixei um bilhete na mesa da cozinha: “Hoje vou cuidar de mim. Volto ao fim do dia.” Saí sem fazer barulho.

A praia da Figueirinha estava deserta. Sentei-me na areia fria, abracei os joelhos e deixei as lágrimas caírem finalmente. Senti-me livre e culpada ao mesmo tempo. Livre por ter dito não; culpada por saber que ia magoar quem gostava de mim.

Por volta das dez da manhã, o telemóvel começou a tocar sem parar: primeiro a minha irmã, depois o António, depois a sogra. Ignorei tudo. Mergulhei no livro que trouxera — “Os Maias”, porque sempre me perdi nas desgraças dos outros para esquecer as minhas.

Ao meio-dia, uma mensagem do António: “A tua mãe está preocupada. A minha mãe está furiosa. Volta para casa.” Respirei fundo e escrevi apenas: “Hoje é o meu dia.” Não respondi mais.

Às três da tarde, ouvi passos na areia atrás de mim. Era a minha irmã, Inês, ofegante e com os olhos vermelhos.

— Maria! O que estás a fazer? Toda a gente está à tua procura! — Ela sentou-se ao meu lado, sem esperar resposta.

— Estou a viver o meu aniversário pela primeira vez em anos — disse-lhe, olhando para o mar.

Ela ficou calada durante um tempo. Depois suspirou:

— Sabes que a mãe não vai perdoar isto tão cedo… E o António está uma fera.

— Eu sei — respondi baixinho. — Mas já não aguentava mais viver para agradar toda a gente menos a mim própria.

Inês pegou na minha mão. — Também gostava de ter essa coragem…

Ficámos ali sentadas até o sol começar a descer no horizonte. Quando voltei para casa ao fim do dia, encontrei o António sentado à mesa da sala, sozinho, com o bolo intacto à frente dele.

— Espero que tenhas aproveitado — disse ele sem me olhar nos olhos.

— Aproveitei — respondi com firmeza, apesar do coração apertado.

Durante dias ninguém me falou direito em casa. A sogra ligou-me só para dizer que nunca esperou tamanha desfeita de mim. A minha mãe chorou ao telefone: “Filha, isto não se faz à família!” O António dormiu no sofá durante uma semana.

No trabalho, contei à minha colega Ana o que tinha feito. Ela olhou para mim como se eu fosse louca — ou talvez invejosa.

— Gostava de conseguir fazer isso — confessou ela num sussurro.

Comecei a perceber que não era só eu que me sentia presa às expectativas dos outros. Quantas mulheres portuguesas vivem assim? Quantas vezes anulamos os nossos desejos para manter a paz?

Com o passar dos dias, as coisas foram acalmando em casa. O António voltou ao quarto, mas havia um muro invisível entre nós. Um dia, ao jantar, ele perguntou:

— Vais fazer isto todos os anos agora?

Sorri-lhe com tristeza e esperança ao mesmo tempo:

— Não sei… Mas sei que nunca mais vou deixar de me ouvir.

A sogra nunca mais falou do assunto; a minha mãe acabou por aceitar, embora ainda me lance olhares magoados quando falo em aniversários.

Ganhei alguma coisa? Perdi outra? Não sei responder ainda hoje. Mas aprendi que ser fiel a mim própria tem um preço — e talvez valha mesmo a pena pagá-lo.

E vocês? Já tiveram coragem de dizer não à família para dizer sim a vocês próprios? Será egoísmo ou apenas sobrevivência?