O Limite das Nossas Forças: O Dia em que Tudo Mudou
— Não aguentas mais, Miguel? — perguntou a minha mãe ao telefone, a voz carregada de preocupação, enquanto eu olhava para o relógio da cozinha, já quase meia-noite. Oiço o choro abafado do Tomás no quarto ao lado e a televisão ligada na sala, onde a Ana, minha mulher, estava sentada, aparentemente alheia ao caos.
— Não é isso, mãe. Só… só estou cansado. — Tento não deixar transparecer o desespero na minha voz. — Sinto que faço tudo sozinho. Trabalho dez horas por dia, chego a casa e ainda tenho de tratar do jantar, do banho do Tomás, da roupa… A Ana diz que está cansada, mas eu também estou. Não sei se ela percebe.
Desligo o telefone e fico ali parado, com as mãos apoiadas no balcão frio. Oiço o barulho dos talheres por lavar, o eco dos brinquedos espalhados pelo chão. Sinto-me invisível. Lembro-me de quando éramos só nós dois, antes do Tomás nascer. Ríamos por tudo e por nada. Agora, parece que só discutimos ou nos ignoramos.
Naquela noite, decidi fazer um “experimento”. Queria perceber até onde ia a indiferença da Ana ou se era eu que estava a exagerar. Durante uma semana, não fiz nada em casa além do estritamente necessário para o Tomás não passar fome ou frio. Não lavei loiça, não apanhei brinquedos, não pus roupa a lavar. Queria ver se ela notava, se reagia.
No segundo dia, a cozinha já parecia um campo de batalha. O cheiro dos restos de comida misturava-se com o leite azedo no copo do Tomás. A Ana continuava sentada no sofá, olhos fixos no telemóvel. À noite, tentei puxar conversa:
— Ana, tens reparado como anda a casa?
Ela encolheu os ombros.
— Estou cansada, Miguel. O trabalho está a sugar-me tudo. Não tenho cabeça para mais nada.
— E eu? Também trabalho! — explodi sem querer. — Achas que é fácil para mim?
Ela olhou-me como se eu fosse um estranho.
— Não sei o que queres que faça. Sinto-me esgotada.
A discussão ficou no ar como uma nuvem negra. Fomos dormir sem nos tocarmos.
No quarto dia, a minha mãe apareceu sem avisar. Entrou e ficou boquiaberta com o estado da casa.
— O que se passa aqui? — perguntou baixinho, para não acordar o Tomás.
— Nada — menti, mas ela percebeu logo.
— Vocês precisam de conversar. Isto não é vida para ninguém.
Senti-me envergonhado e revoltado ao mesmo tempo. Porque é que tinha de ser sempre eu a ceder? Porque é que ninguém via o meu esforço?
Naquela noite, sentei-me à mesa com a Ana depois de deitarmos o Tomás.
— Isto não pode continuar assim — disse-lhe, tentando controlar as lágrimas. — Sinto que estou sozinho nisto tudo.
Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.
— Miguel… Eu sei que não tenho feito a minha parte. Mas sinto-me tão perdida… O trabalho está uma pressão constante, sinto-me inútil como mãe e como mulher. Às vezes só queria desaparecer.
As palavras dela caíram sobre mim como um balde de água fria. Nunca tinha ouvido a Ana falar assim. Sempre pensei que ela era forte, que aguentava tudo sem se queixar.
— Porque nunca me disseste isso? — perguntei, a voz embargada.
Ela encolheu os ombros, os olhos cheios de lágrimas.
— Achei que não ias perceber. Que ias achar que era uma desculpa.
Naquele momento percebi que o meu “experimento” tinha falhado — ou talvez tivesse resultado demasiado bem. Em vez de nos aproximar, mostrou-nos o abismo em que estávamos metidos.
Nos dias seguintes tentámos conversar mais. Fomos juntos buscar o Tomás à creche, fizemos jantar simples só para podermos estar juntos à mesa. A casa continuava desarrumada, mas aos poucos fomos encontrando pequenas rotinas: eu lavava a loiça enquanto ela dava banho ao Tomás; ela preparava as mochilas enquanto eu arrumava os brinquedos.
Uma noite, depois de deitarmos o Tomás e arrumarmos juntos a cozinha pela primeira vez em meses, sentámo-nos no sofá em silêncio. Senti uma paz estranha — como se estivéssemos finalmente do mesmo lado da barricada.
— Achas que vamos conseguir? — perguntei-lhe baixinho.
Ela sorriu tristemente.
— Só se continuarmos a falar. Só se deixarmos de fingir que está tudo bem quando não está.
Olhei para ela e vi não só a mulher com quem casei, mas também uma pessoa cheia de medos e dúvidas como eu. Percebi que ambos tínhamos chegado ao nosso limite — e talvez fosse esse o ponto de partida para recomeçarmos.
Agora pergunto-me: quantos casais vivem assim, em silêncio, cada um convencido de que carrega sozinho o peso do mundo? E se falássemos mais cedo? Será que evitávamos tanto sofrimento?