O Jogo da Minha Mãe: Como Perdi o Meu Lar e a Confiança da Mulher Que Amava

— Não acredito que voltaste a chegar tarde, Ricardo! — gritou a Inês assim que entrei em casa, as palavras dela cortando o silêncio da noite como uma faca afiada.

Senti o peito apertar. O cheiro do jantar frio ainda pairava no ar, misturado com o perfume doce da Inês, agora azedo pela raiva. Olhei para ela, os olhos marejados de lágrimas e cansaço. Tentei explicar:

— O comboio atrasou-se outra vez, amor. Sabes como está o trânsito na Linha de Sintra…

Ela virou-me as costas, os ombros tensos. — Sempre desculpas, Ricardo. Sempre desculpas. A minha mãe tinha razão sobre ti.

Aquelas palavras doeram mais do que qualquer discussão. Dona Teresa, a minha sogra, nunca gostou de mim. Desde o primeiro jantar em casa dela, percebi o olhar de desconfiança, as perguntas insidiosas sobre o meu emprego, a minha família, até sobre a minha maneira de vestir. “Um rapaz de Massamá não é homem para a minha filha”, ouvi-a sussurrar à Inês quando pensava que eu não escutava.

No início, tentei ignorar. Inês defendia-me, dizia que a mãe era antiquada, que com o tempo tudo mudaria. Mas Dona Teresa era persistente. Começou a aparecer em nossa casa sem avisar, criticava a forma como arrumávamos a sala, como cozinhávamos, até como educávamos o nosso cão, o Tobias. E cada vez que eu tentava impor limites, ela fazia-se de vítima diante da Inês.

— Ele não me respeita, filha. Não me quer aqui. — dizia ela, com voz trémula.

Inês ficava dividida. Eu via nos olhos dela a dúvida a crescer, alimentada pelas palavras venenosas da mãe. E eu… eu sentia-me cada vez mais sozinho dentro da minha própria casa.

As coisas pioraram quando perdi o emprego no escritório de contabilidade. Foi um corte coletivo, mas Dona Teresa fez questão de lembrar à Inês que “um homem que não consegue segurar um emprego não serve para construir família”. Comecei a fazer biscates: entregas ao domicílio, limpezas em escritórios à noite, tudo para não deixar faltar nada em casa. Mas cada euro ganho parecia valer menos aos olhos da minha sogra.

Uma noite, cheguei exausto e encontrei Dona Teresa sentada à mesa da cozinha com a Inês. Pararam de falar assim que entrei. O silêncio era pesado.

— Ricardo — começou Dona Teresa —, já pensaste em procurar algo mais… estável? A Inês merece segurança.

— Estou a fazer tudo o que posso — respondi, tentando manter a calma.

Ela sorriu, aquele sorriso falso que me gelava o sangue. — Às vezes o esforço não chega.

Inês não disse nada. Apenas olhou para mim com uma tristeza que me partiu o coração.

Os meses passaram e as discussões aumentaram. Pequenas coisas tornavam-se grandes batalhas: quem lavava a loiça, quem passeava o Tobias, quem pagava as contas. E sempre, como uma sombra, estava lá Dona Teresa, pronta a lançar mais uma dúvida na cabeça da filha.

Uma tarde de domingo, depois de mais uma discussão sobre dinheiro, saí para apanhar ar. Sentei-me num banco do jardim e chorei como há muito não chorava. Senti-me derrotado. Lembrei-me do meu pai, homem simples de Trás-os-Montes, que sempre dizia: “Ricardo, nunca deixes ninguém meter-se entre ti e quem amas”. Mas como lutar contra alguém que se esconde atrás do amor de mãe?

Quando voltei para casa, encontrei as malas feitas junto à porta.

— O que é isto? — perguntei, a voz tremendo.

Inês estava sentada no sofá com Dona Teresa ao lado dela. Os olhos vermelhos denunciavam horas de choro.

— Preciso de espaço — disse ela baixinho. — A minha mãe acha melhor eu ir para casa dela uns tempos… até as coisas acalmarem.

Olhei para Dona Teresa e vi nos olhos dela um brilho de vitória que me enojou.

— Vais mesmo deixar que ela decida por ti? — perguntei à Inês.

Ela desviou o olhar. — Não sei mais em quem confiar.

A porta fechou-se atrás delas e fiquei sozinho com o Tobias e um silêncio ensurdecedor.

Os dias seguintes foram um tormento. Tentava ligar à Inês mas ela não atendia. Mandava mensagens que ficavam sem resposta. Ia trabalhar como um autómato e voltava para casa vazia todas as noites.

Uma tarde recebi uma carta registada: pedido de separação de bens e aviso para não me aproximar da casa dos pais dela. Senti-me traído não só pela Inês mas por toda a família dela — uma família que eu tentei amar como se fosse minha.

Os amigos afastaram-se aos poucos; ninguém queria tomar partido. Só a minha mãe me ligava todos os dias:

— Filho, volta para casa uns tempos. Não tens de passar por isto sozinho.

Mas eu sentia vergonha. Vergonha de ter falhado como marido, como homem. Passei noites em claro a pensar no que podia ter feito diferente. Será que devia ter sido mais firme com Dona Teresa? Ou devia ter ignorado as provocações?

Um dia encontrei a Inês por acaso no supermercado do bairro. Ela estava diferente: mais magra, olheiras fundas.

— Inês… — chamei baixinho.

Ela hesitou antes de responder:

— Ricardo… não sei se devemos falar.

— Só quero saber se estás bem.

Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses e vi ali toda a dor que também me consumia.

— Não estou — confessou ela. — Sinto falta do que éramos antes… antes de tudo isto.

— A tua mãe nunca gostou de mim — disse eu num sussurro — mas tu sempre disseste que éramos mais fortes juntos.

Ela chorou ali mesmo no corredor dos iogurtes e eu quis abraçá-la mas ela afastou-se.

— Preciso de tempo — disse antes de sair apressada.

Fiquei ali parado minutos intermináveis, sentindo-me ainda mais perdido do que antes.

Hoje vivo sozinho num pequeno apartamento em Benfica. O Tobias é a minha única companhia fiel. Às vezes passo pela antiga casa onde fui feliz e vejo luzes acesas; imagino se Inês estará lá ou se já seguiu em frente sem mim.

Pergunto-me todos os dias: será possível reconstruir uma vida depois de perder tudo por causa das intrigas de alguém? Ou será que há feridas que nunca saram? Talvez alguém aí tenha respostas melhores do que as minhas…