O Grito Silencioso de Uma Mãe: A História de Bárbara e Tiago
— Tiago? — minha voz saiu trêmula, quase um sussurro, enquanto o via atravessar apressado o átrio da estação de Santa Apolónia. Ele parou, olhou-me nos olhos por um segundo que pareceu uma eternidade, e depois desviou o olhar, fingindo não me reconhecer. O meu coração apertou-se como se uma mão invisível o esmagasse.
Nunca pensei que chegaria a este ponto. Sempre fui só eu e ele, desde que o pai dele nos deixou quando Tiago tinha apenas três anos. Lembro-me de noites em claro, a embalar-lhe a febre, de manhãs frias em que o levava ao colégio antes de correr para o meu turno no hospital de São José. Trabalhei como auxiliar de enfermagem durante vinte e cinco anos, dobrando turnos, sacrificando fins-de-semana e feriados para garantir que nada lhe faltava.
— Mãe, não precisavas de te esforçar tanto — dizia-me ele em adolescente, quando eu chegava a casa exausta. Mas eu via nos olhos dele o orgulho e a gratidão. Ou pelo menos pensava ver.
A adolescência trouxe distâncias. Tiago começou a sair com amigos do bairro, a chegar tarde, a responder-me torto. Eu tentava conversar, mas ele fechava-se cada vez mais. Depois vieram as más companhias, as notas a descer, as discussões cada vez mais frequentes.
— Tu não percebes nada! — gritou-me uma noite, depois de eu lhe pedir para não sair com o Rui e o Diogo, dois rapazes conhecidos por arruaças. — Só sabes trabalhar e ralhar!
Chorei sozinha nessa noite. Senti-me impotente, mas nunca deixei de lutar por ele. Quando Tiago fez vinte anos, decidiu sair de casa. Disse-me que precisava de espaço, que Lisboa era pequena demais para nós os dois.
— Vais ver que é melhor assim — disse-me ele, sem olhar para trás.
Os anos passaram. Mandava-lhe mensagens nos aniversários, nos Natais. Raramente respondia. Quando respondia, era seco: “Está tudo bem.” Nunca mais me pediu ajuda, nunca mais me procurou.
Até ao dia em que recebi o diagnóstico: carcinoma do pulmão. O médico foi direto:
— Dona Bárbara, temos de ser realistas. O tratamento é agressivo e não há garantias.
A primeira pessoa em quem pensei foi Tiago. Precisava dele. Não só para me ajudar nas consultas e tratamentos, mas porque sentia que o tempo estava a esgotar-se e havia tanto por dizer.
Tentei ligar-lhe várias vezes. Mensagens no WhatsApp ficaram azuis, mas sem resposta. Liguei à Ana, uma amiga dele:
— Ana, sabes do Tiago? Preciso mesmo de falar com ele.
— Ele está bem, Bárbara… mas anda muito ocupado com o trabalho. Eu digo-lhe que ligaste.
Nada. O silêncio era ensurdecedor.
Foi por isso que naquele dia na estação, quando o vi ao longe — reconheci-o pelo andar apressado e pelo casaco azul-escuro que lhe ofereci no último Natal juntos — corri atrás dele sem pensar duas vezes.
— Tiago! — repeti, mais alto desta vez.
Ele parou, olhou-me com frieza e disse:
— Desculpe, deve estar a confundir-me com outra pessoa.
O mundo desabou ali mesmo. Senti as pernas fraquejarem. As pessoas passavam por mim apressadas, indiferentes à tragédia silenciosa que se desenrolava ali mesmo.
Fiquei ali parada minutos intermináveis. Depois sentei-me num banco e chorei como nunca tinha chorado antes. Não era só dor física — era uma dor existencial, um vazio impossível de preencher.
Nos dias seguintes tentei racionalizar: talvez estivesse zangado comigo por algo que fiz ou deixei de fazer; talvez estivesse envergonhado da vida que levava; talvez simplesmente não soubesse lidar com a minha doença. Mas nenhuma explicação me consolava.
A vizinha do lado, Dona Lurdes, tentou animar-me:
— Ele há-de voltar, Bárbara. Os filhos são assim… às vezes precisam de tempo.
Mas eu sabia que havia algo mais fundo ali. Uma ferida antiga que nunca sarou.
Comecei a escrever cartas para Tiago. Não as enviei — não sabia sequer onde morava agora — mas escrevia todos os dias:
“Meu filho,
Hoje lembrei-me de quando eras pequeno e pedias para dormir na minha cama porque tinhas medo dos trovões…”
Escrevia sobre os meus medos, sobre a doença, sobre o quanto sentia a falta dele. Escrevia sobre arrependimentos: será que fui dura demais? Será que devia ter sido mais amiga e menos mãe?
O tratamento foi duro. Perdi peso, perdi cabelo, perdi forças. Mas nunca perdi a esperança de um dia ouvir a voz do meu filho dizer: “Mãe”.
Certa noite acordei sobressaltada com uma dor aguda no peito. Liguei para o INEM e fui levada ao hospital onde trabalhei tantos anos. Os colegas reconheceram-me; trataram-me com carinho e respeito. Mas senti falta do abraço do meu filho.
No hospital ouvi conversas de outras mães com os filhos à cabeceira. Vi lágrimas sinceras, mãos apertadas em silêncio cúmplice. E eu ali sozinha, rodeada de máquinas e memórias.
Uma tarde recebi uma visita inesperada: Ana apareceu com um ramo de flores.
— Trouxe-te isto… e notícias do Tiago — disse ela hesitante.
O coração acelerou.
— Ele está bem? Vai vir?
Ana hesitou antes de responder:
— Ele sabe que estás aqui… mas disse que não consegue vir. Que é melhor assim para os dois.
Senti raiva pela primeira vez em muito tempo. Raiva dele por me abandonar; raiva de mim por ainda esperar algo dele; raiva da vida por ser tão cruel com quem só tentou amar.
Os dias passaram lentos no hospital. Os médicos diziam-me para ter esperança; os enfermeiros sorriam com pena nos olhos.
Uma noite sonhei com Tiago em criança: corria para mim no parque das Amoreiras, ria-se alto e abraçava-me com força. Acordei a chorar baixinho.
Agora escrevo esta história porque preciso que alguém saiba: amar um filho é dar tudo sem esperar nada em troca… mas também é sofrer quando esse amor não encontra eco.
Pergunto-me todos os dias: onde errei? Será que algum dia ele vai perceber o quanto significou para mim? Ou será este silêncio a única resposta?
E vocês? Já sentiram este vazio? O que fariam se fossem eu?