O Grito Silencioso de Mariana: Libertando-me das Correntes de Rui
— Outra vez chegaste tarde, Mariana? — A voz de Rui cortou o silêncio da cozinha como uma faca cega, arrastando consigo todo o cansaço do meu corpo. As sacolas pesavam nas minhas mãos, mas era o olhar dele que me esmagava.
— O trânsito estava impossível, Rui. E ainda tive de passar no supermercado porque não havia nada para o jantar — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o tremor nas palavras.
Ele encostou-se ao balcão, braços cruzados, olhar frio. — Sempre desculpas. Se fosses mais organizada, não andavas sempre a correr atrás do prejuízo.
Engoli em seco. Não valia a pena discutir. Sabia que, para ele, eu nunca fazia o suficiente. Desde que Rui perdera o emprego na fábrica de calçado em São João da Madeira, há quase um ano, tudo recaía sobre mim: as contas, as compras, os cuidados com a casa e até com a mãe dele, Dona Lurdes, que morava connosco desde que ficou viúva.
— Precisas de dinheiro para pagar o empréstimo? — perguntei, já sabendo a resposta.
Ele desviou o olhar. — O banco ligou outra vez. Disse-lhes que esta semana resolvia. — O tom era quase um sussurro, como se tivesse vergonha de admitir a dependência.
Suspirei e deixei as sacolas na bancada. — Vou ver o que consigo fazer. Mas não posso continuar assim, Rui. Estou exausta.
Ele não respondeu. Limitou-se a sair da cozinha, deixando-me sozinha com o cheiro do frango assado e das batatas por descascar. Senti as lágrimas ameaçarem cair, mas engoli-as com a mesma força com que engolia todos os dias a vontade de fugir dali.
Naquela noite, depois de jantar — um jantar silencioso, interrompido apenas pelo som da televisão e dos talheres — fui para o quarto mais cedo. Sentei-me na cama e olhei para as paredes nuas. Lembrei-me de quando nos mudámos para aquele apartamento pequeno em Gaia: eu cheia de sonhos, ele cheio de promessas. Agora só restavam contas por pagar e silêncios pesados.
O telemóvel vibrou. Era uma mensagem da minha irmã, Sofia:
“Mana, estás bem? Precisas de alguma coisa?”
Demorei a responder. Não queria preocupar ninguém. Mas também não queria continuar a fingir que estava tudo bem.
“Estou cansada, Sofia. Sinto-me sozinha aqui.”
Ela ligou-me de imediato.
— Mariana, vem passar uns dias cá a casa. O pai pergunta sempre por ti. Não tens de aguentar isso sozinha.
— Não posso abandonar tudo assim…
— Não é abandonar! É cuidares de ti. Ele não muda, mana. Já viste como estás? Nem pareces tu.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante horas. Lembrei-me das discussões constantes com Rui, dos olhares de pena dos vizinhos quando me viam carregar sacos sozinha, das noites em claro a fazer contas à vida.
No dia seguinte, acordei antes do sol nascer. Fui trabalhar como sempre — sou auxiliar numa escola primária em Vila Nova de Gaia — mas sentia-me diferente. Cada sorriso das crianças parecia um lembrete do que eu já fui: leveza, esperança, alegria.
Durante o intervalo do almoço, sentei-me no refeitório com a minha colega e amiga Ana Paula.
— Estás com um ar péssimo, Mariana…
— Não tenho dormido bem — confessei.
Ela pousou a mão na minha. — Sabes que podes contar comigo para tudo, não sabes? Já pensaste em sair de casa?
— Tenho medo… E se ele não conseguir pagar o empréstimo? E se Dona Lurdes ficar sozinha?
Ana Paula suspirou. — E tu? Quem cuida de ti?
A pergunta ficou presa na garganta o resto do dia.
Quando cheguei a casa nessa noite, Rui estava sentado no sofá, olhos vidrados no televisor. Dona Lurdes dormia na poltrona ao lado.
— Trouxeste dinheiro? — perguntou sem desviar os olhos do ecrã.
— Não tenho mais nada para dar — respondi num fio de voz.
Ele levantou-se abruptamente. — Então como é que vamos pagar isto tudo? Achas que o dinheiro cai do céu?
— Eu trabalho todos os dias! Tu é que não fazes nada! — explodi finalmente, surpreendendo até a mim mesma.
O silêncio caiu pesado na sala. Dona Lurdes acordou sobressaltada.
— O que se passa aqui? — perguntou ela, voz trémula.
Rui olhou para mim com raiva nos olhos. — És uma ingrata! Se não fosses tu eu já tinha resolvido isto tudo!
— Pois então resolve! — gritei-lhe de volta. — Eu não aguento mais!
Corri para o quarto e tranquei a porta atrás de mim. Sentei-me no chão e chorei como há muito não chorava. Senti uma mistura de alívio e medo: alívio por finalmente ter dito o que sentia; medo do que viria a seguir.
Na manhã seguinte, fiz as malas em silêncio enquanto Rui dormia no sofá. Escrevi um bilhete para Dona Lurdes:
“Desculpe sair assim. Preciso cuidar de mim agora. Espero que compreenda.”
Liguei à Sofia:
— Mana… posso ir para tua casa?
Ela chorou do outro lado da linha: — Vem já! Estou à tua espera.
Saí sem olhar para trás. O ar frio da manhã pareceu-me um abraço depois de tanto tempo presa numa casa sem janelas abertas.
Os primeiros dias em casa da minha irmã foram estranhos: sentia culpa por ter deixado Rui e Dona Lurdes; sentia medo do futuro; sentia vergonha por ter aguentado tanto tempo aquela vida. Mas também sentia esperança.
O meu pai recebeu-me com um abraço apertado e lágrimas nos olhos:
— A minha menina voltou…
Sofia ajudou-me a encontrar um psicólogo no centro de saúde local. Nas primeiras sessões mal conseguia falar sem chorar; mas aos poucos fui recuperando a voz e a vontade de viver.
Rui tentou ligar-me várias vezes. Mandou mensagens: “Volta para casa”, “Preciso de ti”, “Sem ti não sou nada”. Apaguei-as todas sem responder.
Dona Lurdes ligou-me uma vez:
— Mariana… desculpa se alguma vez te fiz sentir mal nesta casa. Só quero que sejas feliz.
Chorei ao ouvir aquelas palavras simples e verdadeiras.
Passaram-se meses até conseguir respirar fundo sem sentir culpa ou medo. Voltei ao trabalho na escola primária; aluguei um pequeno apartamento só meu; comecei a sair com amigas antigas; redescobri quem era Mariana antes de Rui.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em relações assim? Quantas têm medo de dar o passo para a liberdade?
Será que algum dia vamos aprender a amar-nos primeiro? E tu… já te perguntaste se és feliz ou apenas sobrevives?