O Grito de Valentina: Entre o Amor de Mãe e o Silêncio das Paredes

— Valentina! — gritei, sentindo o sangue gelar-me nas veias. O som do seu choro atravessou-me como uma lâmina, cortando qualquer esperança de que aquele sábado seria apenas mais uma troca rotineira entre casas. Corri pelo corredor do apartamento do Miguel, tropeçando no tapete da entrada, o coração a martelar no peito.

A porta da sala estava entreaberta. Lá dentro, vi a minha filha caída no chão, as mãos a protegerem a cabeça, e a Aubrey — aquela mulher que nunca me inspirou confiança — de vassoura erguida, os olhos arregalados de surpresa ao ver-me ali.

— O que é que se passa aqui?! — berrei, incapaz de controlar o tremor na voz.

Aubrey largou a vassoura com um estrondo. — Nora, isto não é o que parece! Ela… ela estava a fazer birra, tropeçou sozinha!

Valentina soluçava, os olhos vermelhos e inchados. — Mãe… — murmurou, estendendo-me os braços.

Ajoelhei-me ao lado dela, abraçando-a com força. O cheiro do seu cabelo misturava-se com o suor frio do medo. Senti-a tremer contra mim.

— O que aconteceu, meu amor? — perguntei baixinho, tentando não chorar.

Ela hesitou, olhando para Aubrey. — Eu só queria ir contigo… Ela disse que eu era má…

Miguel apareceu à porta nesse instante, a cara fechada. — Nora, não faças uma cena. A Valentina está sempre a inventar histórias quando não consegue o que quer.

Levantei-me devagar, mantendo Valentina junto a mim. — Não me interessa o que tu achas, Miguel. Se ela está assustada, alguma coisa se passou aqui.

O silêncio caiu pesado sobre nós. Aubrey cruzou os braços, defensiva. — Estás a chamar-me mentirosa?

— Estou a dizer que vou levar a minha filha ao hospital e depois à polícia se for preciso — respondi, sentindo uma coragem feroz crescer dentro de mim.

Miguel bufou. — Sempre foste dramática, Nora. Não vais estragar a vida da Valentina com as tuas paranoias.

Ignorei-o. Peguei na mochila da Valentina e saí dali com ela ao colo, sentindo os olhares deles queimarem-me as costas.

No carro, Valentina calou-se finalmente, mas agarrou-se à minha mão como se eu pudesse desaparecer a qualquer momento. O caminho até ao hospital foi feito em silêncio, só interrompido pelos meus pensamentos aos gritos: Como é que deixei isto acontecer? Porque é que nunca confiei verdadeiramente na Aubrey? E Miguel… será que ele sabia?

No hospital, a médica examinou Valentina com delicadeza. Não havia sinais de lesões graves, mas as marcas vermelhas nos braços dela contavam outra história.

— Sra. Nora, quer fazer participação? — perguntou-me a médica, olhando-me nos olhos.

Olhei para Valentina. Ela desviou o olhar.

— Quero — respondi sem hesitar.

A noite foi passada em casa dos meus pais em Almada. A minha mãe chorou comigo na cozinha enquanto o meu pai tentava acalmar Valentina com histórias antigas do tempo em que ele era miúdo na Beira Baixa.

— Nora, tens de ter cuidado — disse a minha mãe baixinho. — O Miguel pode virar isto contra ti no tribunal.

— Prefiro perder tudo do que arriscar perder a Valentina — respondi, sentindo as lágrimas escorrerem-me pela cara.

Os dias seguintes foram um pesadelo. Miguel ligava-me sem parar, ora suplicando para retirar a queixa, ora ameaçando levar-me a tribunal por alienação parental. Aubrey mandou-me mensagens cheias de ódio: “És uma louca! Vais destruir esta família!”.

Valentina começou a ter pesadelos. Acordava a meio da noite aos gritos: “Não me batas! Não me batas!”. Eu abraçava-a até ela adormecer outra vez, sentindo-me impotente perante o sofrimento dela.

Na escola, a professora chamou-me à parte. — Nora, a Valentina está muito retraída. Não quer brincar com os outros meninos. Disse-me que tem medo de ir para casa do pai.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como é que ninguém tinha reparado antes? Será que todos fingiam não ver?

O processo judicial foi rápido para os padrões portugueses, mas cada audiência parecia uma eternidade. Miguel apresentou testemunhas: vizinhos que juravam nunca ter ouvido nada estranho; Aubrey chorou no tribunal, dizendo que sempre tratou Valentina como uma filha.

Eu mostrei as mensagens da minha filha, os desenhos dela cheios de figuras tristes e monstros com cara de vassoura. Mostrei as marcas nos braços dela e os relatórios médicos.

No final, o juiz olhou para mim com cansaço. — Sra. Nora, sabe que estas situações são sempre complicadas. Mas perante os indícios apresentados e o bem-estar da menor, vou suspender as visitas do pai até nova avaliação psicológica.

Senti um alívio imenso misturado com culpa. Valentina abraçou-me no corredor do tribunal e sussurrou: — Obrigada por me ouvires, mãe.

Mas nada voltou a ser igual. Miguel afastou-se ainda mais da nossa vida; Aubrey desapareceu sem deixar rasto. Os meus pais tentaram preencher o vazio com amor e rotinas seguras: passeios ao parque Eduardo VII, tardes de cinema em casa, bolos de iogurte ao domingo.

Valentina foi recuperando devagarinho. Voltou a sorrir aos poucos; voltou a brincar; voltou a confiar em mim — mas nunca mais pediu para dormir em casa do pai.

Às vezes pergunto-me se fiz tudo certo. Se protegi verdadeiramente a minha filha ou se lhe roubei para sempre o direito de ter um pai presente. Mas depois lembro-me do grito dela naquele dia e sei que não podia ter feito outra coisa.

E vocês? O que fariam se estivessem no meu lugar? Até onde iriam para proteger um filho?