O Grelhador Velho do Vizinho e a Lição de Generosidade

— Não, Francisco. Já disse que não empresto o grelhador. — A voz do Sr. Manuel ecoou pelo pátio, seca e definitiva, como se cada palavra fosse um tijolo a erguer um muro entre nós.

Fiquei parado, com as mãos nos bolsos, sentindo o calor do início do verão a subir pelas paredes do prédio antigo. O cheiro a sardinha assada vinha do quintal dele, misturado com o aroma da lenha húmida. Era um grelhador velho, de ferro fundido, com marcas de ferrugem e histórias de décadas. Eu só queria usá-lo para um churrasco com a família no domingo, mas o Sr. Manuel, teimoso como sempre, recusava-se a ceder.

— Mas, Sr. Manuel, é só por uma tarde… prometo que devolvo limpo! — insisti, tentando sorrir.

Ele abanou a cabeça, os olhos semicerrados.

— Uma vez emprestei ao António do terceiro andar e nunca mais ficou igual. Cada um cuida das suas coisas, Francisco. Já dizia o meu pai: “Mais vale prevenir do que remediar.” — E virou-me as costas, desaparecendo para dentro de casa.

Fiquei ali, a olhar para o grelhador através da vedação. Senti uma pontada de irritação e outra de vergonha. Afinal, não era só pelo grelhador; era pelo gesto, pela confiança entre vizinhos que eu achava que existia. Voltei para casa cabisbaixo, a pensar em alternativas. O meu filho, Tiago, apareceu à porta da cozinha.

— Então, pai? Vamos ter churrasco?

— Não vai dar, filho. O Sr. Manuel não quer emprestar o grelhador.

Tiago fez beicinho e foi contar à irmã mais nova, a Matilde. Ouvi-os a discutir na sala:

— O pai não consegue nada… — resmungou ela.

Senti-me pequeno. A minha mulher, Ana, veio ter comigo enquanto eu mexia distraidamente no telemóvel à procura de grelhadores em segunda mão.

— Não fiques assim. Podemos fazer outra coisa — sugeriu ela.

Mas eu estava obcecado com aquela recusa. Não era só pelo churrasco; era pelo orgulho ferido. Passei a noite a remoer aquilo, lembrando-me das vezes em que ajudei o Sr. Manuel com as compras ou quando lhe dei boleia ao hospital.

No dia seguinte, acordei cedo com barulho no pátio. Espreitei pela janela e vi o Sr. Manuel a tentar levantar o grelhador sozinho. Cambaleava, puxando-o pelo cabo enferrujado. De repente, tropeçou e caiu pesadamente no chão.

Corri escadas abaixo sem pensar duas vezes.

— Está tudo bem? — perguntei, ajudando-o a levantar-se.

Ele estava pálido e tremia.

— Ia só limpar isto… mas já não tenho idade para estas coisas — murmurou.

Levei-o até à cadeira mais próxima e fui buscar água. O grelhador tinha ficado tombado no chão, uma das pernas partidas.

— Deixe estar, eu trato disso — disse-lhe.

Passei o resto da manhã a arranjar o grelhador. Troquei a perna partida por uma tábua velha e limpei-o como nunca tinha sido limpo antes. O Sr. Manuel ficou sentado a ver-me em silêncio.

Quando terminei, ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Obrigado… Francisco. Às vezes sou teimoso demais — admitiu.

Senti um nó na garganta. Pensei em todas as pequenas guerras frias entre vizinhos: o barulho das crianças, os lugares de estacionamento disputados, os olhares atravessados no elevador.

— Todos precisamos de ajuda às vezes — respondi.

Ele sorriu, um sorriso tímido mas sincero.

— Se ainda quiseres o grelhador para domingo… está à vontade.

Sorri também, mas naquele momento percebi que já não era sobre o grelhador. Era sobre algo maior: sobre orgulho, sobre pedir e dar ajuda sem esperar nada em troca.

No domingo fizemos o churrasco no pátio do Sr. Manuel. Ele sentou-se connosco, contou histórias da infância em Trás-os-Montes e riu-se com as crianças. A Ana trouxe sobremesa para todos e até os vizinhos do lado apareceram com vinho verde.

No final da tarde, enquanto arrumávamos tudo, o Sr. Manuel pôs-me a mão no ombro:

— Sabes, Francisco… às vezes guardamos tanto as nossas coisas que esquecemos de partilhar o que realmente importa.

Fiquei a pensar nisso enquanto via as crianças correrem pelo pátio ao pôr-do-sol. Quantas vezes deixamos passar oportunidades de sermos generosos? Quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto?

Agora pergunto-me: será que vale mesmo a pena guardar tanto para nós quando podemos ganhar tanto ao partilhar? E vocês? Já perderam alguma oportunidade por orgulho ou medo de perder algo material?