O Frigorífico Está Sempre Vazio, Mas O Meu Coração Também
— Outra vez o frigorífico vazio, Kyle? — gritei da cozinha, sentindo o eco da minha própria voz nas paredes frias do apartamento. O cheiro do café queimado misturava-se com a ansiedade que me apertava o peito. O meu marido, António, estava sentado à mesa, olhar perdido no jornal, mas eu sabia que ele ouvia cada palavra.
— Mãe, eu trabalho até tarde… esqueço-me de sair — respondeu o Kyle, sem levantar os olhos do portátil. O brilho azul iluminava-lhe o rosto redondo, cansado. Tinha 32 anos, mas parecia um adolescente preso num corpo de homem.
— Não é só esquecer! — interrompeu António, voz grave. — Não podes continuar assim. Não sais de casa, não tens amigos, não tens ninguém…
O silêncio caiu pesado. Senti a culpa a corroer-me por dentro. Fui eu que sempre lhe fiz tudo. Sempre lhe dei colo, comida, desculpas. Agora era tarde demais para mudar?
Lembro-me de quando o Kyle era pequeno. Corria pelo quintal da casa dos meus pais em Setúbal, os joelhos esfolados e o sorriso fácil. Depois veio a adolescência, o isolamento, as más notas. “É só uma fase”, diziam-me as vizinhas. Mas a fase nunca passou.
O tempo foi passando e as discussões aumentaram. O António queria ser mais duro, eu queria proteger. “Se não fores tu a puxá-lo para a vida, quem será?”, dizia-me ele à noite, quando o Kyle já estava fechado no quarto.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da luz e do supermercado — sempre a subir — sentei-me ao lado do António na sala escura.
— Achas que falhámos como pais? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele suspirou, passou a mão pela minha e disse:
— Não sei, Maria. Mas não podemos continuar assim. Estamos a envelhecer e ele… ele está a perder-se.
No dia seguinte, tentei conversar com o Kyle. Sentei-me na beira da cama dele, entre pilhas de roupa suja e embalagens vazias de comida.
— Filho, tens de sair mais. Arranjar um trabalho fora de casa… conhecer pessoas.
Ele encolheu os ombros.
— Não percebes, mãe. Lá fora é difícil. Aqui estou seguro.
— Seguro? — repeti, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — Isto não é vida! Nem para ti, nem para nós!
Ele virou-se para o lado, ignorando-me. Saí do quarto com o coração apertado.
As semanas passaram. O frigorífico continuava vazio ao fim de dois dias. O dinheiro mal chegava para as contas. O António começou a falar em vender o carro para pagar as dívidas.
Uma tarde, ouvi vozes vindas do quarto do Kyle. Espreitei pela porta entreaberta e vi-o a falar com alguém pelo computador.
— Não posso sair hoje… não me apetece — dizia ele.
Do outro lado, uma voz feminina insistia:
— Anda lá! Só um café no Chiado…
O meu coração saltou uma batida. Havia esperança?
Esperei que ele terminasse a chamada e entrei no quarto.
— Quem era?
Ele corou.
— Uma colega… chama-se Inês.
Sentei-me ao lado dele.
— Porque não vais? Pode ser bom para ti.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses.
— E se ela não gostar de mim? Olha para mim… — apontou para o corpo pesado, os olhos tristes.
Abracei-o com força.
— O que interessa é quem tu és por dentro. Mas tens de te dar uma oportunidade.
Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar em tudo o que tínhamos feito — ou deixado de fazer — como pais. Será que o tínhamos protegido demais? Será que ainda havia tempo para mudar?
No dia seguinte, o Kyle saiu de casa pela primeira vez em semanas. Vestiu uma camisa engomada (que eu própria preparei), penteou o cabelo e saiu sem dizer nada. Fiquei à janela a vê-lo desaparecer na esquina da rua.
As horas passaram devagar. O António chegou do trabalho e encontrou-me sentada à mesa da cozinha, mãos trémulas sobre uma chávena de chá frio.
— Onde está ele?
— Foi tomar café com uma colega — respondi, tentando esconder a ansiedade na voz.
O António sorriu pela primeira vez em muito tempo.
Quando o Kyle voltou já era noite. Entrou devagarinho, pousou as chaves e olhou para nós.
— Correu bem — disse apenas, antes de se fechar no quarto.
Na manhã seguinte, encontrei um bilhete na porta do frigorífico: “Mãe, vou sair outra vez hoje. Não te preocupes com o jantar.” Sorri e chorei ao mesmo tempo.
Os dias começaram a mudar devagarinho. O Kyle começou a sair mais vezes, a falar mais connosco à mesa. A Inês tornou-se presença frequente cá em casa — tímida ao início, mas sempre com um sorriso doce para todos.
Mas nem tudo foi fácil. O António teve uma crise de ciúmes paternal quando viu o filho apaixonado pela primeira vez na vida adulta.
— E se ela só está com ele por pena? — murmurou uma noite.
— Deixa-o viver — respondi-lhe. — Ele merece ser feliz.
As discussões diminuíram, mas nunca desapareceram por completo. A vida real é feita de altos e baixos — contas por pagar, frigorífico vazio ao fim da semana, preocupações com o futuro.
Um dia, o Kyle anunciou que ia alugar um quarto com a Inês em Lisboa. Senti um misto de orgulho e vazio impossível de explicar.
No dia em que fez as malas, abracei-o com força e sussurrei-lhe ao ouvido:
— Vai ser feliz, filho. Mas não te esqueças de onde vens.
Agora a casa está mais silenciosa. O frigorífico continua vazio muitas vezes — mas o meu coração está mais cheio do que nunca.
Às vezes pergunto-me: será que fizemos tudo certo? Ou será que amar demais também pode ser um erro? E vocês… até onde iriam por um filho?