O Fio Invisível: A Prova da Minha Amizade à Sombra da Maternidade

— Não posso, Sofia. O Tomás está com febre outra vez, e o Miguel ainda não chegou do trabalho. — A voz da Mariana soava cansada, quase distante, do outro lado da linha.

Fiquei em silêncio por uns segundos, a olhar para o copo de vinho meio vazio na minha mão. Era sexta-feira à noite, o nosso ritual de sempre: jantar fora, rir até doer a barriga, partilhar segredos e sonhos. Mas agora, tudo parecia pertencer a outra vida. Uma vida antes do Tomás, antes das noites mal dormidas e das chamadas interrompidas por choros de bebé.

— Claro, percebo — respondi, tentando esconder a mágoa. — Talvez para a semana?

— Sim, sim… prometo que compenso. — O tom dela era apressado, como se já estivesse noutro lugar. — Tenho de ir, Sofia. Depois ligo-te.

A chamada terminou e fiquei ali sentada, sozinha na sala silenciosa do meu pequeno apartamento em Lisboa. Olhei para as fotografias na parede: eu e a Mariana na praia da Comporta, a rir com os cabelos ao vento; nós duas no festival de música em Paredes de Coura; abraçadas no casamento dela, há apenas dois anos. Como é que tudo mudou tão depressa?

No início, achei que era só uma fase. Que a Mariana voltaria a ser a mesma depois dos primeiros meses difíceis. Mas os meses passaram e ela foi-se afastando cada vez mais. As conversas resumiam-se ao Tomás: as cólicas, as primeiras palavras, as noites sem dormir. Eu tentava partilhar as minhas novidades — o novo projeto no trabalho, o fim do namoro com o Pedro — mas ela parecia sempre distraída, como se o mundo fora da maternidade tivesse deixado de existir.

Comecei a sentir-me invisível. Uma figurante na vida dela. E isso doía mais do que queria admitir.

Uma tarde de domingo, decidi aparecer de surpresa. Levei um bolo de chocolate — o preferido dela — e bati à porta com um sorriso forçado.

— Sofia! — Ela abriu a porta com o Tomás ao colo, olheiras fundas e cabelo preso num coque desalinhado. — Que surpresa!

— Pensei que podíamos lanchar juntas… como nos velhos tempos.

Ela hesitou um segundo antes de me deixar entrar. A casa estava desarrumada, brinquedos espalhados pelo chão, fraldas numa pilha ao lado do sofá. Sentei-me e tentei ignorar o caos.

— Desculpa a confusão… — murmurou ela, pousando o Tomás no tapete.

— Não faz mal. — Sorri, mas sentia-me deslocada.

Enquanto ela preparava chá na cozinha, ouvi-a falar sozinha:

— Onde é que pus as chávenas? Ai, esta cabeça…

Quando voltou, sentou-se à minha frente mas parecia inquieta, sempre de olho no filho.

— Então… como tens estado? — perguntei.

Ela suspirou.

— Cansada. Às vezes sinto que perdi quem era antes… Mas depois olho para ele e tudo faz sentido. Sabes?

Assenti, mas não sabia. Não conseguia compreender aquele amor avassalador que parecia consumir tudo à volta dela — inclusive a nossa amizade.

Tentei contar-lhe sobre uma entrevista importante que tinha tido na empresa:

— Fui chamada para coordenar um projeto novo…

Mas ela interrompeu-me:

— Espera só um bocadinho… Tomás! Não ponhas isso na boca! — Levantou-se num salto e correu para o filho.

Fiquei ali sentada, sozinha outra vez.

Quando finalmente se sentou de novo, já não tive coragem de continuar. O bolo ficou quase intacto na mesa.

No caminho para casa, senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que tinha de ser sempre eu a fazer o esforço? Porque é que ela não percebia que também eu precisava dela?

Na semana seguinte, decidi não ligar. Esperei que fosse ela a dar notícias. Os dias passaram em silêncio. No trabalho perguntavam-me pela Mariana e eu encolhia os ombros, fingindo indiferença.

Uma noite, recebi uma mensagem dela:

«Desculpa estar tão ausente… Sinto muito a tua falta.»

Fiquei a olhar para aquelas palavras durante minutos. Queria responder com frieza, mostrar-lhe como me magoava aquela distância. Mas acabei por escrever:

«Também tenho saudades tuas.»

No fundo, sabia que não era só culpa dela. A vida muda e nós mudamos com ela. Mas custava aceitar que talvez nunca voltássemos a ser como antes.

No Natal desse ano, aceitei o convite para jantar em casa dela com o Miguel e o Tomás. Levei um presente para o miúdo e outro para ela: um álbum de fotografias nossas.

Durante o jantar, tentei integrar-me nas conversas sobre fraldas e creches, mas sentia-me sempre à margem. Quando finalmente ficámos sozinhas na cozinha, arrumei coragem:

— Sentes que ainda somos amigas?

Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.

— Sofia… és das pessoas mais importantes da minha vida. Só que agora tudo é diferente. Às vezes sinto-me culpada por não conseguir estar mais presente para ti…

Abracei-a com força.

— Eu também mudei. Só tenho medo de te perder.

Ela sorriu entre lágrimas.

— Não me vais perder. Só precisamos de encontrar uma nova forma de sermos amigas.

Saí daquela casa com o coração apertado mas esperançoso. Talvez nunca voltássemos a ser as mesmas, mas talvez isso não fosse necessariamente mau.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas amizades sobrevivem às mudanças inevitáveis da vida? Será possível reinventar laços sem perdermos quem somos? E vocês… já sentiram este fio invisível a esticar até quase partir?