O Fantasma do Meu Marido: Entre o Trabalho, a Mãe Dele e o Meu Silêncio

— Vais sair outra vez, Ricardo? — perguntei, a voz tremendo mais do que queria admitir. Lá fora, a chuva batia com força nos vidros, como se quisesse entrar e testemunhar o que se passava dentro da nossa casa.

Ricardo nem me olhou. Pegou nas chaves do carro e murmurou:

— A minha mãe está sozinha. Precisa de mim. E amanhã tenho reunião cedo, não devo voltar tarde.

Fiquei ali, parada no corredor, com o nosso filho, Tomás, a dormir no quarto ao lado. Oiço o som da porta a fechar-se e, com ele, sinto o peso da solidão a cair-me em cima dos ombros. Quantas vezes já vivi esta cena? Quantas vezes me perguntei onde é que eu cabia na vida do meu próprio marido?

Quando casei com Ricardo, há sete anos, nunca imaginei que a nossa vida se tornaria isto: ele sempre ausente, dividido entre o trabalho no escritório de advogados e as exigências da mãe, Dona Lurdes. Eu? Eu era a sombra que ficava para trás, a mulher que esperava, que fazia jantares para dois e acabava a comer sozinha.

No início, tentei compreender. Dona Lurdes ficou viúva pouco antes do nosso casamento. Ricardo era filho único e sentia-se responsável por ela. Mas os anos passaram e eu fui ficando cada vez mais invisível. Quando engravidei do Tomás, pensei que tudo mudaria. Que ele perceberia que também eu precisava dele. Mas enganei-me.

Lembro-me de uma noite em particular, há dois anos. Estava grávida de oito meses e tive uma crise de ansiedade. Liguei-lhe — estava na casa da mãe — e pedi-lhe para vir para casa. Ele respondeu:

— Não posso sair agora. A minha mãe não está bem.

Chorei sozinha naquela noite, abraçada à barriga enorme, sentindo-me mais sozinha do que nunca.

Depois do nascimento do Tomás, as coisas pioraram. As noites sem dormir, as cólicas do bebé, o cansaço extremo… E Ricardo cada vez mais distante. Quando estava em casa, estava ao telefone com clientes ou a responder a emails. Quando não estava em casa, estava com Dona Lurdes.

A minha mãe dizia-me:

— Filha, tens de falar com ele. Não podes deixar que isto continue assim.

Mas como falar com alguém que parece não querer ouvir?

Comecei a sentir raiva de Dona Lurdes. Não era justo, eu sabia. Ela era uma mulher sozinha, carente, mas parecia absorver tudo o que era do Ricardo — até o tempo que devia ser nosso.

Houve um domingo em que decidi confrontá-la. Fui com Tomás ao apartamento dela sem avisar. Ela abriu a porta com aquele sorriso forçado.

— Olá, Mariana! Vieste ver como está o Ricardo?

— Vim ver como estamos todos — respondi, tentando manter a calma.

Ela olhou-me de cima a baixo.

— O Ricardo está cansado. Trabalha tanto…

— Eu também estou cansada — disse-lhe. — E também preciso dele.

Ela encolheu os ombros.

— Ele é meu filho. Sempre foi assim.

Saí dali com lágrimas nos olhos e um nó na garganta. Senti-me uma intrusa na minha própria família.

As discussões entre mim e Ricardo começaram a ser mais frequentes. Eu reclamava da ausência dele; ele dizia que eu não compreendia as responsabilidades dele. Uma noite, depois de Tomás adormecer, explodi:

— Sinto-me sozinha nesta casa! Sinto que não existo para ti!

Ele olhou-me como se eu fosse um problema para resolver.

— Mariana, tu sabias como era a minha vida antes de casarmos. Sabias que a minha mãe precisa de mim e que o meu trabalho é exigente.

— E eu? Eu não preciso de ti? O teu filho não precisa de ti?

Ele suspirou e saiu da sala sem responder.

Comecei a duvidar de mim própria. Será que estava a ser egoísta? Será que devia aceitar esta vida? Mas depois olhava para Tomás e via nos olhos dele o mesmo vazio que sentia em mim.

No trabalho, as colegas perguntavam:

— Então e o teu marido? Nunca o vemos nas festas da empresa…

Eu sorria e inventava desculpas: “Está muito ocupado”, “Teve uma reunião”, “A mãe dele está doente”. Mas por dentro sentia vergonha e tristeza.

Certa noite, depois de mais uma discussão, Ricardo saiu sem dizer para onde ia. Fiquei horas à janela, a ver os relâmpagos iluminarem o céu escuro. Senti medo — medo de ficar sozinha para sempre naquela casa cheia de silêncios.

No dia seguinte, decidi procurar ajuda. Marquei consulta com uma psicóloga. Na primeira sessão, chorei durante quase uma hora inteira.

— Sinto-me invisível — disse-lhe. — Sinto que perdi quem sou.

A psicóloga olhou-me com ternura.

— Mariana, tens direito a existir. Tens direito a pedir amor e presença.

Comecei a escrever um diário. Todas as noites, depois de Tomás adormecer, escrevia tudo o que sentia: raiva, tristeza, esperança… Aos poucos fui percebendo que não era só culpa do Ricardo ou da Dona Lurdes. Eu também tinha deixado de lutar por mim.

Uma noite de sexta-feira, depois de pôr Tomás na cama, sentei-me à mesa da cozinha à espera do Ricardo. Quando entrou em casa já passava da meia-noite.

— Precisamos de conversar — disse-lhe antes que pudesse fugir para o escritório ou para o telemóvel.

Ele sentou-se à minha frente com ar cansado.

— O que foi agora?

Respirei fundo.

— Não aguento mais esta vida. Sinto-me sozinha todos os dias. Preciso de ti aqui comigo e com o Tomás. Se não consegues perceber isso… talvez seja melhor cada um seguir o seu caminho.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e foi dormir para o sofá.

Na manhã seguinte, Dona Lurdes ligou-me:

— O Ricardo está aqui comigo. Disse-me que discutiram outra vez.

— Dona Lurdes — respondi com voz firme — eu amo o seu filho, mas não posso continuar assim. Preciso dele ao meu lado como marido e pai do nosso filho.

Ela ficou calada durante uns segundos antes de dizer:

— Talvez tenhas razão…

Nessa tarde, Ricardo voltou para casa. Sentou-se ao meu lado no sofá e pela primeira vez em muito tempo olhou-me nos olhos.

— Desculpa — murmurou. — Não percebi quanto te estava a magoar…

Chorámos juntos nesse dia. Decidimos procurar terapia de casal e tentar reconstruir aquilo que restava do nosso casamento.

Não foi fácil. Houve recaídas, discussões antigas voltaram à tona… Mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio: menos tempo na casa da mãe dele (com visitas combinadas), mais tempo em família; menos trabalho levado para casa; mais conversas honestas entre nós.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci neste processo doloroso. Aprendi que não podemos esperar que os outros nos salvem — temos de lutar por nós próprios primeiro.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas neste silêncio? Quantas se perdem à espera de serem vistas? Será possível amar sem desaparecer?