O Fantasma do Meu Marido: Entre a Casa da Mãe e o Trabalho, Onde Fico Eu?

— Vais mesmo sair agora, Rui? — perguntei, tentando não deixar a voz tremer enquanto embalava o nosso filho de três meses nos braços.

Ele nem olhou para mim. Pegou nas chaves do carro e murmurou:

— A minha mãe precisa de mim. Ela está sozinha desde que o pai morreu, sabes bem.

O som da porta a fechar ecoou pela casa como um trovão. Fiquei ali, parada, com o pequeno Tomás a dormir no meu colo, sentindo-me mais sozinha do que nunca. O silêncio era pesado, quase sufocante. Olhei para as paredes brancas da nossa sala, para as fotografias de casamento que já pareciam pertencer a outra vida.

Nunca pensei que o Rui se tornasse um fantasma na nossa própria casa. Quando nos conhecemos na faculdade do Porto, ele era divertido, atencioso, fazia-me rir até às lágrimas. Os nossos amigos diziam que éramos inseparáveis. Mas agora… agora ele estava sempre ausente. Ou estava no escritório até tarde, ou na casa da mãe dele em Matosinhos. E eu? Eu era a sombra da mulher que fui.

A minha mãe dizia-me para ter paciência. “Os homens são assim, filha. Tens de compreender.” Mas eu não queria compreender. Queria ser vista, ouvida, amada.

Lembro-me do dia em que tudo mudou. Estava grávida de oito meses quando o sogro morreu subitamente de enfarte. O Rui ficou devastado, claro. Mas desde então, era como se tivesse regressado à adolescência: tudo girava à volta da mãe dele. Ela ligava-lhe a toda a hora — “Rui, podes passar cá depois do trabalho? Preciso de ajuda com o gás.” “Rui, não te esqueças de trazer pão.” — e ele ia sempre. Não importava se tínhamos planos ou se eu precisava dele.

No início tentei ser compreensiva. A dor da perda é difícil. Mas depois do nascimento do Tomás, tudo piorou. Passei noites sozinha com o bebé a chorar, enquanto o Rui dizia que tinha de terminar relatórios urgentes ou que a mãe estava deprimida e precisava de companhia.

As minhas amigas tentavam animar-me:

— Quando voltares ao trabalho, vai melhorar — dizia a Joana, sempre otimista.

Mas eu sabia que não era só isso. O problema era mais fundo.

Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me no sofá e chorei em silêncio. O Rui chegou tarde, cheirando a vinho barato e perfume de lavanda — o cheiro da casa da mãe dele.

— Estás bem? — perguntou, sem convicção.

— Achas mesmo que isto está a funcionar? — perguntei-lhe, com a voz embargada.

Ele encolheu os ombros.

— Estou a fazer o melhor que posso.

— E eu? Eu não conto?

Ele ficou calado. O silêncio entre nós era mais eloquente do que qualquer discussão.

No dia seguinte, tentei falar com ele antes de sair para o trabalho.

— Rui, precisamos de ajuda. Não podemos continuar assim.

Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— A minha mãe precisa de mim agora. Tu és forte, consegues aguentar mais um pouco.

Aguentar mais um pouco… Quantas vezes ouvi essa frase? Aguentar quando o Tomás teve febre alta e fui sozinha ao hospital porque ele estava numa reunião importante. Aguentar quando a sogra me criticou por não saber fazer arroz de pato “como deve ser”. Aguentar quando me senti invisível na minha própria casa.

Comecei a evitar os jantares de família. A sogra fazia questão de comentar tudo:

— O Rui está tão magro… Não comes nada em casa? — dizia ela, olhando para mim como se eu fosse uma intrusa.

O Rui nunca me defendia. Limitava-se a sorrir e mudava de assunto.

Certa noite, depois de mais uma discussão sobre as prioridades dele, fiz as malas e fui passar uns dias a casa dos meus pais em Gaia. Queria ver se ele sentia a minha falta. Queria perceber se ainda havia algo para salvar.

Durante esses dias, senti um alívio estranho misturado com culpa. Os meus pais foram carinhosos mas preocupados:

— Filha, tens de pensar em ti e no Tomás — disse o meu pai, sempre pragmático.

O Rui ligou-me apenas uma vez:

— Quando voltas? A minha mãe perguntou por ti…

Não perguntou pelo filho nem pelo neto. Perguntou por mim como quem pergunta por uma empregada ausente.

Voltei para casa porque sentia falta do meu espaço e porque não queria que o Tomás crescesse longe do pai. Mas nada mudou. O Rui continuava ausente, cada vez mais distante. Comecei a sentir raiva dele… e de mim própria por aceitar tão pouco.

Uma tarde, ao buscar o Tomás à creche (finalmente tinha voltado ao trabalho), cruzei-me com a Ana, uma colega antiga da faculdade.

— Estás tão diferente… — disse ela, olhando-me nos olhos — Precisas de ajuda?

Desatei a chorar ali mesmo na rua. Pela primeira vez em meses senti-me ouvida.

A Ana recomendou-me uma terapeuta familiar. Fui sozinha à primeira sessão porque o Rui recusou-se:

— Não preciso dessas coisas — disse ele — Isso é para gente fraca.

Na terapia percebi que estava presa num ciclo de culpa e dependência emocional. Que tinha medo de ficar sozinha mas já vivia sozinha há muito tempo.

Numa noite chuvosa de novembro, tomei uma decisão difícil: pedi ao Rui para sair de casa por uns tempos.

— Preciso de espaço para perceber quem sou sem ti — disse-lhe com firmeza inesperada.

Ele ficou chocado mas não discutiu. Pegou nas coisas e foi para casa da mãe.

Os dias seguintes foram estranhamente calmos. Senti falta dele mas também senti alívio. Comecei a redescobrir pequenos prazeres: ler um livro antes de dormir, ouvir música alta enquanto cozinhava com o Tomás ao colo.

O Rui tentou voltar algumas vezes:

— Podemos tentar outra vez?

Mas eu sabia que não bastava tentar — era preciso mudar.

Hoje olho para trás e vejo como me perdi aos poucos no papel de esposa perfeita e nora obediente. Vejo como deixei de lutar por mim própria para agradar aos outros. Pergunto-me se há muitas mulheres como eu em Portugal — mulheres que vivem casadas com fantasmas, presas entre sogras dominadoras e maridos ausentes.

Será que é possível reconstruir uma família quando só um dos lados quer mudar? Ou será que é preciso ter coragem para recomeçar sozinha?