O Fantasma da Minha Casa: Entre a Sogra e o Trabalho, Onde Está o Meu Marido?

— Outra vez vais jantar à casa da tua mãe, Rui? — perguntei, tentando controlar o tremor na minha voz. O cheiro do arroz de pato que preparara enchia a cozinha, mas ele já estava de casaco vestido, as chaves do carro na mão.

— Ela ligou-me agora, disse que precisava de ajuda com a televisão. Não demoro — respondeu, sem sequer olhar para mim. O tom era o mesmo de sempre: prático, distante, como se eu fosse apenas mais uma tarefa da sua lista.

Senti o bebé mexer-se dentro de mim, uma pontada de vida e esperança misturada com uma tristeza funda. Desde que engravidei, há sete meses, Rui parecia cada vez mais ausente. Primeiro era o trabalho — “O patrão quer que eu fique até mais tarde” — depois a mãe dele, Dona Lurdes, sempre com um problema novo: a máquina de lavar avariada, o gás que acabou, a solidão que ela fazia questão de me lembrar em cada telefonema.

— E eu? — arrisquei, baixinho. — Não precisas de me ajudar? Não te faz falta jantar comigo?

Ele suspirou, como se eu fosse uma criança birrenta. — Não faças dramas, Sofia. Amanhã compenso. — E saiu, deixando-me sozinha com a mesa posta para dois.

O silêncio da casa pesava sobre mim. Liguei à minha mãe, mas ela estava ocupada com o meu irmão mais novo. As amigas diziam-me: “É normal, Sofia. Os homens são assim. Quando o bebé nascer ele muda.” Mas eu não acreditava. Rui nunca mudara por ninguém.

Naquela noite, comi sozinha e chorei baixinho no sofá. Lembrei-me do início do nosso namoro, das promessas sussurradas ao luar na praia da Costa da Caparica: “Nunca te vou deixar sozinha.” Agora parecia tudo tão distante.

No dia seguinte, acordei com dores nas costas e um vazio no peito. Rui já tinha saído para o trabalho. Encontrei um bilhete na bancada: “Volto tarde. Não me esperes. Beijo.” O beijo era só tinta azul num papel.

Passei o dia a arrastar-me pela casa, tentando preparar o enxoval do bebé. Cada peça de roupa dobrada era uma esperança de que Rui entrasse pela porta e dissesse: “Quero ajudar.” Mas ele não veio.

À noite, tentei ligar-lhe. Atendeu ao terceiro toque.

— Estou numa reunião, Sofia. Depois falo contigo.

— Rui, preciso falar contigo… Sinto-me mal… — arrisquei.

— Vai ao hospital se for grave. Eu não posso sair agora.

Desligou antes que eu pudesse responder. Senti-me invisível.

No fim de semana seguinte, Dona Lurdes apareceu cá em casa sem avisar. Entrou como se fosse dona do espaço.

— O Rui está?

— Está a dormir — menti. Na verdade, ele tinha ido trabalhar outra vez.

Ela olhou-me de cima a baixo e disse:

— Sabes, Sofia, os homens precisam de espaço. Não podes estar sempre a exigir atenção. O meu filho trabalha muito para vos sustentar.

Mordi o lábio para não responder. Queria gritar: “E eu? Não trabalho? Não preciso de apoio?” Mas calei-me. Em Portugal, as noras aprendem cedo a engolir sapos.

Quando Dona Lurdes saiu, sentei-me no chão da casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas.

Na segunda-feira seguinte, fui à consulta de rotina sozinha. O médico perguntou pelo pai do bebé.

— Está a trabalhar — respondi, sentindo-me envergonhada sem saber porquê.

Na sala de espera vi outras grávidas acompanhadas pelos maridos. Senti inveja e vergonha dessa inveja.

À noite, Rui chegou tarde outra vez. Tentei falar com ele:

— Rui, precisamos conversar. Sinto-me sozinha nesta gravidez. Preciso de ti aqui comigo.

Ele revirou os olhos.

— Sofia, estou cansado! Achas que é fácil aguentar este stress todo? A minha mãe precisa de mim, o trabalho exige cada vez mais…

— E eu? Eu também preciso! — gritei finalmente.

Ele ficou em silêncio por um momento e depois saiu para fumar na varanda.

Os dias passaram assim: eu sozinha em casa, ele ausente ou calado quando estava presente. Comecei a duvidar de mim própria: estaria a ser egoísta? As amigas continuavam a dizer: “Quando voltares ao trabalho vais ver que tudo melhora.” Mas eu sentia que estava a perder Rui para sempre.

Um dia, ao arrumar o quarto dele (sim, porque ele já dormia noutro quarto), encontrei mensagens no telemóvel dele com uma colega do trabalho. Nada explícito, mas havia cumplicidade demais para meu gosto.

Confrontei-o naquela noite:

— Rui, há alguma coisa entre ti e a Marta?

Ele ficou lívido.

— Estás paranoica! Agora nem posso falar com colegas?

— Não é só isso… Tu já nem olhas para mim! Já nem dormes comigo! — explodi.

Ele atirou as chaves para cima da mesa e saiu porta fora sem dizer palavra.

Fiquei ali parada, com as mãos a tremer e o coração aos pulos. Liguei à minha melhor amiga, Inês.

— Sofia… tu tens de pensar em ti e no bebé — disse ela. — Se ele não muda agora, quando é que vai mudar?

Naquela noite dormi pouco. Senti as primeiras contrações às quatro da manhã. Liguei ao Rui mas ele não atendeu. Acabei por ligar à Inês que me levou ao hospital.

O parto foi difícil e demorado. Quando finalmente ouvi o choro do meu filho — o nosso filho — senti uma alegria imensa misturada com uma tristeza profunda por estar ali sozinha.

Rui apareceu horas depois com um ramo de flores barato e um ar culpado.

— Desculpa… estava a dormir… não ouvi o telefone…

Olhei para ele e vi um estranho. Não sabia se queria perdoá-lo ou expulsá-lo dali mesmo.

Nos dias seguintes tentei reconstruir alguma coisa entre nós por causa do bebé. Mas Rui continuava ausente: ora no trabalho, ora na casa da mãe dele.

Uma noite sentei-me na cama com o bebé ao colo e perguntei-lhe:

— Rui… tu ainda queres esta família?

Ele ficou calado muito tempo antes de responder:

— Não sei… Sinto-me sufocado aqui…

Foi como se me tivessem dado um murro no estômago. Percebi então que estava sozinha há muito tempo — só agora é que aceitava essa verdade.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem assim? Quantas engolem o silêncio dos maridos ausentes porque “é normal”? Será que vale a pena sacrificar a nossa felicidade por uma família que só existe no papel?