O Espelho Que Não Mente: Entre Aparências e Verdades
— Clara, tu não tens mesmo quarenta e oito anos! — exclamou a minha irmã, Teresa, com aquele sorriso meio trocista, meio invejoso, enquanto me passava o creme anti-idade pelas mãos.
Sorri, mas por dentro senti o peso de cada ano que ela negava. O espelho à minha frente devolvia-me uma imagem polida, quase sem rugas, mas os olhos… ah, os olhos não mentem. Ali estava o cansaço de noites mal dormidas, as lágrimas escondidas e as dúvidas que me assaltavam desde que o António me deixara.
— Não percebo porque te preocupas tanto — continuou Teresa, ajeitando o cabelo loiro pintado. — O Pedro está sempre a dizer que pareces uma miúda.
O Pedro. O meu filho. O único que ainda me via como a mãe perfeita, sem falhas, sem idade. Mas até quando? Ele crescia depressa demais e eu sentia-me cada vez mais distante dele. Desde que o pai saiu de casa para viver com uma mulher dez anos mais nova, o silêncio entre nós tornou-se mais denso.
— Mãe, posso ir ao cinema com os amigos? — perguntou ele nesse mesmo instante, entrando na sala sem bater.
— Claro, filho. Mas volta cedo, sim?
Ele assentiu com um aceno distraído. Nem olhou para mim. Senti um aperto no peito. Lembrei-me de quando era pequeno e corria para os meus braços, chamando-me de “super-mãe”. Agora, mal me via.
Teresa olhou para mim com aquele ar de quem sabe tudo.
— Tens de te cuidar, Clara. Se não fores tu a manter-te jovem, ninguém vai olhar para ti. Olha o António… — deixou a frase no ar, venenosa.
Mordi o lábio para não responder. O António trocara-me por uma mulher mais nova, sim. Mas será que foi só isso? Ou terá sido porque eu própria deixei de me ver como alguém interessante? Comecei a pensar em todas as vezes em que recusei sair, em que preferi esconder-me atrás de cremes e maquilhagem em vez de enfrentar o mundo.
À noite, deitada na cama vazia, ouvi o Pedro chegar. Fingi estar a dormir. Senti-o parar à porta do meu quarto, hesitante. Depois afastou-se. O silêncio voltou a instalar-se.
No dia seguinte, fui trabalhar como sempre. No escritório, os comentários eram sempre os mesmos:
— Clara, qual é o teu segredo? — perguntava a Ana Paula, a colega mais nova.
— Dormir bem e beber muita água — respondia eu, rindo por fora e chorando por dentro.
A verdade é que não dormia bem há anos. Acordava sobressaltada com sonhos de juventude perdida e oportunidades desperdiçadas. O trabalho era o meu refúgio, mas também ali sentia o peso da idade. Os chefes preferiam as ideias dos mais novos; eu era vista como alguém “experiente”, mas raramente ouvida.
Uma tarde, ao sair do trabalho, encontrei a minha mãe sentada no banco do jardim em frente ao prédio. Tinha o cabelo todo branco e as mãos enrugadas seguravam um lenço antigo.
— Olá, mãe — sentei-me ao lado dela.
Ela olhou para mim com ternura.
— Estás cansada, filha. Não adianta esconderes atrás desses cremes todos. O tempo passa para todos.
Senti as lágrimas a quererem saltar dos olhos.
— Às vezes sinto que estou a perder tudo… O António foi-se embora, o Pedro já não precisa de mim… E eu… eu só queria sentir-me viva outra vez.
A minha mãe apertou-me a mão.
— A juventude é bonita, mas é passageira. O que fica é aquilo que és por dentro. Não te esqueças disso.
Fiquei ali sentada com ela até o sol se pôr. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me vista — não pela aparência, mas pelo que realmente era.
Nessa noite decidi fazer algo diferente. Liguei à Teresa.
— Queres vir jantar cá a casa amanhã? Só nós as duas.
Ela hesitou.
— Está bem… Mas sem dramas!
No dia seguinte preparei um jantar simples. Quando ela chegou, reparei nas rugas à volta dos olhos dela — rugas que ela tentava esconder com maquilhagem pesada.
— Sabes, Teresa… — comecei enquanto servia o vinho — …às vezes sinto-me tão sozinha nesta luta contra o tempo.
Ela pousou o copo e olhou-me nos olhos pela primeira vez em anos.
— Eu também. Sempre achei que tinhas tudo controlado… Que eras perfeita…
Rimo-nos as duas, nervosas. Pela primeira vez falámos das nossas inseguranças: do medo de envelhecer sozinhas, da pressão para parecermos sempre jovens e bonitas, das comparações constantes umas com as outras e com as mulheres das revistas.
— Sabes o que me dói mais? — confessou ela — É olhar para o espelho e não reconhecer quem lá está. Sinto falta da rapariga que fui…
Abraçámo-nos em silêncio. Percebi que não estava sozinha naquela dor.
Nos dias seguintes tentei mudar pequenas coisas: comecei a caminhar ao fim da tarde; aceitei um convite para sair com colegas do trabalho; falei mais com o Pedro sobre coisas simples do dia-a-dia. Aos poucos fui percebendo que a verdadeira juventude vinha de dentro — da vontade de viver e de partilhar momentos com quem amamos.
Um sábado à tarde, enquanto arrumava fotografias antigas, encontrei uma imagem minha aos vinte anos: cabelo solto ao vento, sorriso aberto, olhos cheios de sonhos. Senti saudades daquela leveza — mas também percebi tudo o que vivi desde então: alegrias, dores, conquistas e perdas.
O Pedro entrou na sala nesse momento e sentou-se ao meu lado.
— Quem é essa?
Sorri.
— Sou eu… há muitos anos atrás.
Ele olhou para mim com surpresa.
— Estavas feliz?
Pensei antes de responder.
— Estava… mas hoje sou diferente. Tenho outras razões para sorrir.
Ele abraçou-me sem dizer nada. Senti finalmente uma paz interior — como se tivesse feito as pazes com o tempo e comigo mesma.
Agora olho para o espelho e vejo mais do que rugas ou sinais de idade: vejo uma mulher inteira, com histórias para contar e vontade de viver cada dia como se fosse único.
Será que algum dia vamos conseguir libertar-nos desta obsessão pelas aparências? Ou estaremos sempre presos à ilusão da juventude eterna? Gostava de saber como vocês lidam com esta pressão…