O Diário Escondido da Minha Mãe: Segredos, Dor e o Peso de Ser Diferente

— Por que é que nunca me perguntas como correu o meu dia, mãe? — perguntei, com a voz embargada, enquanto via a minha mãe a servir o jantar para o Macieira e a Kátia, os meus irmãos. Ela nem sequer olhou para mim. Limitou-se a pousar o prato à minha frente, sem um sorriso, sem um olhar. O silêncio dela era mais pesado do que qualquer grito.

Desde pequena que sentia este vazio. O Macieira era o orgulho da família: bom aluno, futebolista do clube local, sempre com uma piada pronta. A Kátia era a menina dos olhos da mãe: doce, obediente, cheia de amigos. Eu… eu era a Maria. A Maria que nunca acertava no tom, que tropeçava nas palavras e nos próprios pés, que tirava notas medianas e não tinha jeito para nada. Pelo menos era assim que me faziam sentir.

Lembro-me de uma vez, tinha uns oito anos, em que caí da bicicleta e esfolei o joelho. Corri para casa a chorar, sangue a escorrer pela perna. A mãe olhou para mim com impaciência:

— Outra vez, Maria? Não vês que estou ocupada?

Pegou num pano húmido, limpou-me o sangue com pressa e voltou para a cozinha. O Macieira apareceu logo depois com um arranhão no braço e ela correu a buscar o betadine, encheu-o de beijos e mimos. Fiquei ali parada, a olhar para eles, a perguntar-me o que tinha eu feito de errado.

Os anos passaram e o padrão manteve-se. O pai tentava equilibrar as coisas, mas era um homem calado, trabalhador do estaleiro naval em Setúbal, sempre cansado. Quando tentava intervir, a mãe cortava-lhe logo a palavra:

— Não te metas, António. Eu sei o que faço.

E ele calava-se. Eu também aprendi a calar-me.

Foi só quando fiz vinte e três anos, já a estudar em Lisboa e a viver sozinha num quarto alugado em Arroios, que tudo mudou. Recebi um telefonema do meu pai:

— Maria… podes vir cá a casa este fim de semana? A tua mãe não anda bem.

Voltei a Setúbal com o coração apertado. A mãe estava mais magra, os olhos fundos. Não quis ir ao médico. Passou o sábado inteiro fechada no quarto. No domingo à tarde, enquanto arrumava umas caixas antigas no sótão à procura de fotografias para animá-la, encontrei um caderno de capa azul escondido entre mantas velhas.

O meu nome estava escrito na primeira página: “Para a Maria, se algum dia quiser saber quem é”.

As mãos tremiam-me quando comecei a ler.

“Setembro de 1997. Hoje soube que estou grávida outra vez. Não sei se consigo amar este filho como amo os outros. O António não percebe… mas eu nunca quis mais filhos. Sinto-me presa nesta vida que não escolhi.”

As palavras eram facas no meu peito. Continuei a ler compulsivamente.

“Janeiro de 1998. A Maria nasceu hoje. Olho para ela e sinto-me vazia. Não é culpa dela… mas não consigo sentir o mesmo amor que senti pelo Macieira ou pela Kátia. Sinto-me uma má mãe.”

As páginas seguintes eram um desabafo constante: sobre cansaço, sobre sonhos adiados, sobre um casamento sem paixão. Sobre mim — sempre eu — como um peso extra numa vida já demasiado pesada.

“Maria faz tudo para me agradar… mas eu não consigo corresponder. Tenho medo de lhe fazer mal com este distanciamento.”

Fechei o diário com lágrimas nos olhos. Senti raiva — dela, do meu pai, do mundo inteiro. Mas também senti pena daquela mulher presa numa vida apertada demais para os seus sonhos.

Desci as escadas devagarinho e bati à porta do quarto dela.

— Mãe… posso falar contigo?

Ela olhou para mim com surpresa — ou talvez fosse culpa.

— O que foi agora?

Sentei-me na beira da cama e mostrei-lhe o diário.

— Li isto tudo… Preciso de saber: alguma vez me amaste?

Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.

— Maria… — começou ela, com voz rouca — Eu tentei. Juro-te que tentei. Mas havia qualquer coisa em mim… uma tristeza tão grande… Não era tua culpa.

— Mas porque é que nunca me disseste nada? Porque é que me fizeste sentir tão sozinha?

Ela chorou pela primeira vez na minha frente.

— Porque tinha vergonha. Porque achava que uma mãe devia amar todos os filhos por igual… mas eu sentia-me vazia contigo. Não sei explicar porquê.

Ficámos ali sentadas em silêncio. Senti vontade de fugir dali para sempre — mas também percebi que aquela mulher era tão prisioneira quanto eu.

Nos dias seguintes tentei falar com o meu pai sobre tudo aquilo.

— O amor nem sempre é justo — disse ele, com tristeza nos olhos — Mas tu és nossa filha e mereces ser feliz.

A Kátia ficou chocada quando lhe contei parte do que descobri:

— Sempre achei estranho… mas nunca pensei que fosse assim tão grave.

O Macieira limitou-se a encolher os ombros:

— Cada um tem os seus problemas…

A família nunca mais foi igual depois disso. A mãe acabou por aceitar ajuda psicológica — algo impensável antes — e eu comecei também a fazer terapia para tentar curar as feridas antigas.

Hoje olho para trás e vejo uma infância marcada pela ausência de afeto materno — mas também vejo uma mulher presa nos seus próprios fantasmas, incapaz de dar aquilo que nunca recebeu.

Pergunto-me muitas vezes: será possível perdoar verdadeiramente quem nos magoou sem querer? E vocês… já sentiram que não pertenciam ao vosso próprio lar?