O Dia Seguinte: O Peso Invisível de Uma Família em Expansão

— Outra vez, Rita? — A voz de Óscar ecoou pela cozinha, carregada de incredulidade e cansaço. Eu estava sentada à mesa, com uma chávena de chá esquecida nas mãos, quando ouvi o anúncio. O silêncio que se seguiu foi tão denso que quase me sufocou.

Rita, a minha prima, olhou para o chão. Os olhos dela brilhavam com lágrimas contidas, mas havia também uma centelha de desafio. — Sim, Óscar. Estou grávida outra vez.

Oiço o tilintar dos talheres na bancada. Os miúdos brincam na sala, alheios à tempestade que se abate sobre os pais. Sinto-me uma intrusa, mas não consigo afastar-me. Rita é como uma irmã para mim; crescemos juntas em Almada, partilhámos segredos e sonhos. Agora, vejo-a ali, tão frágil e tão forte ao mesmo tempo.

Óscar passa as mãos pelo cabelo, exasperado. — Não temos dinheiro nem para os cinco! Como é que vamos criar mais um? Achas que isto é justo para eles? Para nós?

Rita morde o lábio inferior. — Eu sei que não é fácil… mas…

— Mas o quê? — interrompe ele, a voz a tremer entre raiva e desespero. — Não pensaste em mim? Nos miúdos? No que já passámos?

Ela não responde. O silêncio dela diz tudo. Eu olho para os armários vazios, lembro-me das vezes em que Rita me pediu para lhe trazer um saco de arroz ou um pacote de leite. Lembro-me das noites em que ela me ligou a chorar porque não sabia como pagar a renda.

A mãe de Rita, a tia Lurdes, sempre disse que ela era teimosa. “Tem um coração grande demais para este mundo pequeno”, dizia. Mas agora vejo que o coração dela está a rebentar pelas costuras.

Óscar sai da cozinha, batendo a porta com força. O barulho faz estremecer os copos na prateleira. Rita senta-se ao meu lado, as mãos trémulas no colo.

— Não sei o que fazer, Inês — sussurra ela. — Sinto-me tão sozinha.

Aproximo-me e abraço-a. Sinto o corpo dela a tremer contra o meu. — Não estás sozinha, Rita. Mas tens de falar com ele. Isto não pode continuar assim.

Ela acena com a cabeça, mas vejo nos olhos dela o medo de perder tudo: o marido, os filhos, a casa minúscula onde vivem todos apertados.

Naquela noite, fico para ajudar com o jantar. Os miúdos correm pela casa descalços, rindo-se das pequenas coisas: uma colher de pau transformada em espada, um lençol velho feito de capa de super-herói. Penso em como são felizes apesar de tudo.

Depois do jantar, Óscar volta para casa. O rosto dele está fechado, duro como pedra. Senta-se no sofá sem dizer palavra. Rita olha para ele de relance, hesitante.

— Óscar… precisamos de falar — começa ela.

Ele não responde. Fica ali sentado, olhos fixos na televisão desligada.

— Eu sei que isto não era o que planeámos — continua ela, a voz embargada — mas este bebé já existe. Não posso… não consigo…

— Não consegues o quê? — explode ele de repente. — Não consegues pensar antes de agir? Achas que eu sou feito de ferro?

Os miúdos param de brincar e olham assustados para os pais. O mais velho, o Tiago, aproxima-se devagar e segura na mão da mãe.

— Mãe… está tudo bem?

Rita força um sorriso e afaga-lhe o cabelo. — Está sim, querido.

Mas eu sei que não está nada bem.

Naquela noite, ajudo Rita a deitar os miúdos. Ela senta-se na cama do quarto minúsculo onde dormem três dos filhos e canta-lhes baixinho uma canção antiga que a nossa avó cantava quando éramos pequenas. Vejo-lhe as lágrimas a escorrerem pelo rosto enquanto canta.

Quando finalmente ficamos sozinhas na sala escura, Rita desaba.

— Ele já não me ama, Inês. Sinto-o todos os dias. Só estamos juntos por causa dos miúdos… e agora mais um…

Não sei o que dizer. Oiço-lhe a dor e sinto-me impotente.

— Já pensaste em procurar ajuda? — pergunto baixinho.

Ela encolhe os ombros. — Ajuda? Quem é que nos vai ajudar? Os meus pais mal têm para eles… tu já fazes tanto… E os serviços sociais só servem para tirar os miúdos às pessoas.

Fico calada. Sei que há verdade no que diz, mas também sei que não pode continuar assim.

No dia seguinte acordo cedo com o barulho dos miúdos a correrem pela casa. Óscar já saiu para o trabalho — faz turnos numa fábrica em Setúbal e chega sempre exausto. Rita prepara pequenos-almoços apressados: pão seco com manteiga e leite aguado.

Enquanto lavo a loiça, Rita aproxima-se.

— Inês… achas que sou egoísta?

Olho para ela surpresa. — Egoísta? Porquê?

— Por querer este bebé… por querer tanto ser mãe… mesmo quando tudo está tão difícil?

Penso nas palavras dela durante muito tempo depois de sair daquela casa abafada pelo cheiro de café e roupa por lavar.

Os dias passam e as coisas pioram. Óscar começa a chegar cada vez mais tarde a casa; às vezes nem aparece para jantar. Rita fecha-se cada vez mais no seu mundo silencioso de tarefas domésticas e preocupações.

Uma noite recebo uma chamada dela às três da manhã.

— Inês… podes vir cá? Acho que vou perder o bebé…

Corro até lá sem pensar duas vezes. Encontro-a sentada no chão da casa de banho, pálida e a tremer de medo. Chamo uma ambulância e fico com ela até chegar ao hospital.

No hospital dizem-lhe para descansar e fazer exames no dia seguinte. Passo a noite ao lado dela numa cadeira dura de plástico, ouvindo-lhe os soluços abafados pela almofada.

Quando regressamos a casa ao amanhecer, Óscar está à porta à nossa espera. Pela primeira vez em semanas vejo-lhe lágrimas nos olhos.

— Desculpa… desculpa por tudo — diz ele baixinho, abraçando Rita com força.

Nesse momento percebo como é fácil julgar quem está de fora; como é difícil viver dentro daquela tempestade diária de amor e desespero.

Os meses seguintes são um equilíbrio frágil entre esperança e medo. Rita mantém-se em repouso; eu ajudo como posso com os miúdos e as compras. Óscar tenta mudar: passa mais tempo em casa, procura outro emprego melhor pago, fala mais com Rita.

Mas as feridas estão lá: profundas e difíceis de sarar.

No dia em que nasce o bebé — uma menina chamada Leonor — estamos todos juntos no hospital: eu, Óscar, os irmãos dela e até a tia Lurdes. Choramos todos quando ouvimos o primeiro choro da Leonor; choramos pelo alívio, pela alegria e pelo medo do futuro.

Agora escrevo esta história sentada à mesa da cozinha da Rita enquanto ela amamenta a Leonor ao colo e os outros miúdos brincam no quintal improvisado com vasos velhos e brinquedos partidos.

Penso em tudo o que passámos juntos: as discussões, as noites sem dormir, os abraços apertados nos piores momentos.

Será egoísmo querer ser feliz mesmo quando tudo parece impossível? Ou será coragem continuar a lutar por amor quando o mundo inteiro parece desabar à nossa volta?

E vocês? Já sentiram esse peso invisível nas vossas famílias? Como lidaram com ele?