O Dia em que Vi as Verdadeiras Cores da Minha Sogra
— Não penses que enganas toda a gente com esse teu ar de santa, Vitória! — O grito de Dona Lurdes ecoou pela sala, abafando até o som da chuva que batia nas janelas da casa antiga em Viseu.
O meu coração disparou. Senti o sangue fugir-me do rosto. O meu marido, Miguel, olhou-me de soslaio, como se não soubesse de que lado devia ficar. Eu estava ali, sentada no sofá de veludo verde, com as mãos trémulas no colo, a tentar perceber como é que aquela tarde de domingo tinha descambado tão depressa.
A vida militar do Miguel obrigava-nos a mudar de cidade quase todos os anos. Lisboa, Porto, Évora… E agora Viseu. Cada vez que voltávamos à casa da mãe dele, eu fazia um esforço para me sentir parte da família. Dona Lurdes era sempre calorosa, oferecia-me chá de tília e fatias douradas, perguntava-me pela minha mãe e elogiava o meu cabelo. Mas naquele dia, tudo mudou.
Tudo começou com um simples comentário sobre o jantar. Eu tinha sugerido fazermos bacalhau à Brás, porque sabia que era o prato preferido do Miguel. Dona Lurdes franziu o sobrolho.
— Aqui em casa sempre se fez cabrito assado ao domingo — disse ela, com aquela voz doce que agora me parecia cheia de veneno.
— Eu só pensei… — tentei justificar-me, mas ela interrompeu-me.
— Pensaste mal. Não é por estares casada com o meu filho que podes mudar as nossas tradições.
Miguel ficou calado. Eu senti-me pequena, como uma criança apanhada a fazer asneira. Fui para a cozinha ajudar, mas cada gesto meu era vigiado. Quando cortei as batatas demasiado finas, ouvi um suspiro impaciente. Quando temperei a carne, ela tirou-me o sal das mãos.
O jantar foi um desfile de silêncios constrangedores e olhares furtivos. O meu cunhado Rui tentou aliviar o ambiente contando piadas sobre o trabalho na Câmara Municipal, mas ninguém riu. A minha sogra serviu-me a menor fatia de cabrito e nem sequer me perguntou se queria repetir.
Depois do jantar, enquanto arrumava a loiça, ouvi-a sussurrar à irmã ao telefone:
— Ela não é daqui. Nunca vai ser uma de nós.
Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. Quis fugir dali, mas não queria dar-lhe esse prazer. Fui para o quarto de hóspedes e sentei-me na cama, abraçada ao casaco do Miguel. Ele entrou pouco depois.
— O que se passa contigo? — perguntou ele, cansado.
— Não viste como a tua mãe me tratou? — sussurrei, tentando não chorar alto.
Ele encolheu os ombros.
— A minha mãe é assim com toda a gente… Não ligues.
Mas eu ligava. Ligava porque sentia que nunca seria suficiente para aquela família. Porque cada vez que mudávamos de cidade eu perdia um pedaço de mim e esperava encontrar algum conforto ali, naquela casa onde o Miguel cresceu.
Na manhã seguinte, tentei fazer as pazes. Preparei café e torradas para todos. Dona Lurdes entrou na cozinha e olhou para mim como se eu fosse uma intrusa.
— Não precisas de te esforçar tanto — disse ela friamente. — O Miguel gosta é do café da mãe dele.
O Rui entrou nesse momento e tentou desanuviar:
— Ó mãe, deixa lá a Vitória em paz! Ela só quer ajudar.
Mas Dona Lurdes não cedeu. Olhou-me nos olhos e disse:
— Tu nunca vais perceber o que é ser mãe de um filho militar. Nunca vais saber o medo que é cada vez que ele sai por aquela porta.
Eu quis dizer-lhe que também tinha medo. Que cada vez que o Miguel partia para uma missão eu passava noites sem dormir, agarrada ao telemóvel à espera de uma mensagem. Mas calei-me. Senti que nada do que dissesse mudaria aquela barreira invisível entre nós.
Quando chegou a hora de irmos embora, Dona Lurdes abraçou o Miguel com força e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Ele acenou com a cabeça e depois olhou para mim com um misto de culpa e resignação.
No carro, durante a viagem de regresso a casa, ficámos em silêncio durante quilómetros. Finalmente, arrisquei:
— O que é que ela te disse?
Ele hesitou antes de responder:
— Disse-me para ter cuidado contigo. Que tu só pensas em ti e não percebes os sacrifícios da família.
Senti um nó na garganta. Olhei pela janela e vi as árvores passarem depressa demais.
— E tu? O que pensas tu? — perguntei baixinho.
Ele não respondeu.
Durante semanas tentei esquecer aquele fim de semana em Viseu. Atirei-me ao trabalho no hospital, fiz novos amigos na cidade nova, mas sentia sempre aquele peso no peito. O Miguel começou a chegar mais tarde a casa e falava cada vez menos comigo.
Uma noite, depois do jantar, ele largou os talheres e disse:
— Não sei se isto está a resultar…
O chão fugiu-me dos pés.
— O quê?
— Nós… Tu e eu… — Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso. — A minha mãe tem razão. Tu nunca vais entender esta vida.
Chorei como nunca tinha chorado antes. Gritei-lhe tudo o que tinha guardado: o medo das mudanças constantes, a solidão nas cidades novas, o esforço para agradar à família dele. Ele ficou calado, olhando para mim como se eu fosse uma estranha.
Na manhã seguinte ele fez as malas e foi para casa da mãe. Fiquei sozinha naquele apartamento frio, rodeada por caixas ainda por desfazer da última mudança.
Os dias passaram devagar. Recebi mensagens dos meus pais em Coimbra a perguntar se estava tudo bem. Respondi sempre com um “sim” forçado. No hospital, os colegas notaram a minha tristeza mas ninguém perguntou nada diretamente.
Uma tarde chuvosa — como aquela em Viseu — recebi uma chamada do Rui.
— Vitória… Desculpa ligar-te assim… Mas acho que devias saber: a mãe está doente. Cancro no pulmão…
Senti um misto de raiva e pena. Queria odiá-la por tudo o que me fez sentir, mas não consegui ignorar aquela notícia.
Fui visitá-la ao hospital semanas depois. Ela estava magra e pálida na cama branca. Quando me viu entrar, desviou o olhar.
— Vim ver como está — disse eu baixinho.
Ela não respondeu logo. Depois murmurou:
— Nunca fui justa contigo… Tinha medo de perder o meu filho…
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão fria.
— Eu também tive medo… Medo de nunca ser suficiente para vocês.
Chorámos as duas em silêncio durante minutos intermináveis.
O Miguel voltou para casa algum tempo depois. As feridas demoraram a sarar — algumas talvez nunca sarem completamente — mas aprendi a viver com elas.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas nestes silêncios e mal-entendidos? Quantas mulheres sentem que nunca serão aceites por quem mais desejam agradar? Será possível quebrar este ciclo ou estamos todos condenados a repeti-lo?