O Dia em Que Tudo Mudou, Mas Não Para Melhor

— Não quero esse cão aqui em casa, Mariana! — O grito do meu pai ecoou pela cozinha, fazendo-me estremecer. Eu segurava o pequeno Tobias nos braços, as patas dele tremendo tanto quanto as minhas mãos. Era uma manhã fria de novembro em Lisboa, e o cheiro de café queimado misturava-se ao nervosismo que pairava no ar.

Nunca fui de grandes emoções. A minha vida era feita de rotinas: acordar às sete, apanhar o autocarro para o trabalho na biblioteca municipal, regressar a casa para jantar com os meus pais e, depois, ler até adormecer. Não havia espaço para surpresas ou imprevistos. Mas naquele dia, ao virar a esquina da Rua dos Anjos, deparei-me com aquele cãozinho encolhido junto a um caixote do lixo, os olhos suplicantes cravados nos meus.

— Mariana, ou ele vai embora ou eu vou! — insistiu o meu pai, batendo com força na mesa. A minha mãe, sempre mediadora, tentava acalmar os ânimos:

— António, é só um cãozinho… Está tão magro. Mariana, tens a certeza que consegues cuidar dele?

Eu não tinha. Mas naquele momento, sentia que precisava dele tanto quanto ele precisava de mim. Talvez fosse o vazio dos meus dias, talvez fosse a solidão que me acompanhava desde que a minha irmã mais velha, Inês, se mudara para o Porto e deixara um buraco impossível de preencher.

— Eu trato dele — prometi, a voz mais firme do que me sentia por dentro.

O início foi um caos. Tobias não estava habituado a casas nem a pessoas. Chorava durante a noite, roía os móveis da sala e fazia necessidades onde calhava. O meu pai resmungava todos os dias:

— Isto não é vida! Nem consigo ver o telejornal descansado!

A minha mãe tentava ajudar, mas era eu quem acordava às três da manhã para limpar o chão ou acalmar Tobias quando ele uivava de medo dos trovões. O cansaço acumulava-se nos meus ossos e nas olheiras profundas que nem o corretor conseguia disfarçar.

No trabalho, os colegas começaram a notar a minha distração. A Dona Rosa, sempre atenta:

— Mariana, estás bem? Pareces tão longe…

Eu sorria e encolhia os ombros. Como explicar que um cãozinho estava a virar a minha vida do avesso?

As discussões em casa tornaram-se rotina. O meu pai ameaçava sair, a minha mãe chorava baixinho na cozinha e eu sentia-me cada vez mais culpada. Comecei a duvidar das minhas escolhas. Será que tinha feito bem? Será que Tobias merecia mais do que eu podia dar?

Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, sentei-me no chão do meu quarto com Tobias ao colo. Ele lambeu-me as lágrimas como se entendesse tudo. Sussurrei-lhe:

— Desculpa… Só queria não estar tão sozinha.

No dia seguinte, recebi uma mensagem inesperada da Inês: “Ouvi dizer que tens companhia nova. Precisas de ajuda?” Hesitei antes de responder. Não falávamos há meses desde uma discussão sobre a venda da casa da avó. Mas aceitei.

Inês veio no fim de semana seguinte. Trouxe brinquedos para Tobias e um saco de ração especial. Sentámo-nos as duas no sofá enquanto ele corria pela sala.

— Não sabia que estavas assim — disse ela suavemente. — Senti a tua falta.

As palavras ficaram suspensas entre nós como uma ponte frágil prestes a ruir. Falei-lhe das noites mal dormidas, das discussões com o pai, do medo de falhar.

— Mariana… às vezes precisamos de algo ou alguém para nos obrigar a sair do lugar — respondeu ela. — Talvez este cão tenha vindo por isso.

Durante algumas semanas as coisas melhoraram. O meu pai começou a habituar-se à presença de Tobias — até lhe dava restos do jantar às escondidas. A minha mãe sorria mais vezes e Inês ligava-me todos os domingos para saber como estávamos.

Mas a paz foi breve. Uma tarde chuvosa, ao regressar do trabalho, encontrei Tobias à porta de casa, encharcado e a tremer. O portão estava aberto. O meu pai esquecera-se de fechá-lo.

Corri para ele, abracei-o com força e levei-o ao veterinário. Pneumonia. Dias no hospital veterinário, contas para pagar e noites em claro à espera de notícias.

O ambiente em casa tornou-se insuportável. O meu pai culpava-se em silêncio; eu não conseguia perdoá-lo nem perdoar-me por ter deixado Tobias sozinho.

Quando finalmente o trouxe para casa, magro e frágil, percebi que nada voltaria a ser como antes. O medo de perder tornou-se uma sombra constante.

O tempo passou e Tobias recuperou lentamente. Mas eu já não era a mesma Mariana de antes. Aprendi que o amor pode ser caótico e doloroso; que as rotinas podem ser destruídas num instante; que as pessoas erram — e os animais também.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido melhor nunca ter encontrado Tobias? Teria sido mais fácil continuar sozinha? Ou será que é precisamente no caos e na dor que aprendemos quem realmente somos?

E vocês? Já sentiram que uma escolha inesperada vos virou a vida do avesso? Valeu a pena?