O Dia em Que Pedi à Minha Avó para Passar o Apartamento para o Meu Nome

— Nora, estás muito calada hoje. — A voz da minha avó Gabriela ecoou pela cozinha, enquanto mexia lentamente o arroz de tomate. O cheiro do refogado enchia o ar, mas eu mal conseguia engolir a saliva. O relógio antigo na parede marcava quase sete da tarde e eu sabia que não podia adiar mais.

— Avó… — comecei, sentindo o coração bater-me no peito como se quisesse fugir dali. — Posso falar contigo sobre uma coisa importante?

Ela pousou a colher de pau e olhou-me com aqueles olhos castanhos cheios de rugas e histórias. — Claro, filha. O que se passa?

Respirei fundo. Durante doze anos, desde que a minha mãe desapareceu da minha vida, foi a avó Gabriela quem me criou. Foi ela quem me ensinou a fazer panados de frango perfeitos, quem me levou ao teatro municipal para ver peças que eu não compreendia mas adorava, quem me segurou quando chorei pela primeira vez por causa de um rapaz. Era ela quem me esperava todos os dias à porta da escola, mesmo quando chovia torrencialmente.

Mas agora… agora a minha mãe, a tal figura ausente que só conhecia de fotografias antigas e telefonemas esporádicos no Natal, tinha voltado. Quinn — nome estranho para uma portuguesa, mas foi o que ela escolheu quando se mudou para Londres — reapareceu há três semanas, com malas e promessas de recomeço.

— Avó… eu queria falar sobre o apartamento. — As palavras saíram-me num sussurro. — Já pensaste em passar o apartamento para o meu nome? Não é por interesse… é só porque… sabes como as coisas são. Se acontecer alguma coisa…

A Gabriela ficou em silêncio. O arroz começou a pegar ao fundo do tacho e o cheiro mudou de agradável para acre. Ela desligou o lume e sentou-se à minha frente.

— Nora, tu sabes que eu confio em ti. Mas porque é que estás a trazer isso agora?

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Porque a mãe voltou. E eu não sei o que ela quer. Tenho medo que… que ela queira tirar-me daqui. Que queira vender isto tudo.

A avó suspirou. — A tua mãe é minha filha, Nora. Ela tem direito a estar aqui também.

— Mas ela nunca esteve! — explodi, surpreendendo-me com a força da minha própria voz. — Ela deixou-me contigo quando eu era uma criança! Tu é que me criaste! Tu é que estiveste sempre aqui!

O silêncio caiu pesado entre nós. Oiço os passos da Quinn no corredor antes de ela entrar na cozinha, com aquele ar de quem não sabe bem onde pertence.

— Está tudo bem? — perguntou ela, olhando de mim para a avó.

Gabriela levantou-se devagar e foi buscar três pratos. — Vamos jantar.

Durante o jantar, ninguém falou muito. Eu picava o arroz com o garfo, sem vontade de comer. Quinn tentou puxar conversa sobre Londres, sobre os teatros do West End e os mercados de Camden Town, mas eu só conseguia pensar no medo de perder tudo aquilo que era meu — ou pelo menos assim sentia.

Depois do jantar, fui arrumar a loiça enquanto ouvia as duas conversarem baixinho na sala. Senti-me uma intrusa na minha própria casa.

Mais tarde, já com a casa em silêncio, sentei-me na varanda a fumar um cigarro às escondidas da avó. O bairro estava calmo, só se ouvia ao longe o som de um televisor e o ladrar de um cão.

Lembrei-me das noites em que adormecia no colo da Gabriela enquanto ela me contava histórias de quando era jovem em Lisboa, dos bailes no Intendente e das sardinhadas em Alfama. Lembrei-me do cheiro do seu perfume barato misturado com o aroma do café acabado de fazer.

A porta da varanda abriu-se devagar e Quinn apareceu ao meu lado.

— Posso? — perguntou, apontando para o banco ao meu lado.

Encolhi os ombros.

— Nora… eu sei que não tens razões para confiar em mim. Sei que falhei contigo. Mas não vim cá para tirar nada a ninguém.

Olhei para ela pela primeira vez sem raiva nos olhos. Vi uma mulher cansada, com rugas novas à volta dos olhos e um olhar perdido.

— Então porque voltaste? — perguntei.

Ela suspirou. — Porque percebi que estava sozinha lá fora. E porque senti falta de ti… e da minha mãe.

Ficámos ali em silêncio durante uns minutos.

— A avó está velha — disse eu finalmente. — E eu tenho medo do futuro.

Quinn assentiu devagar. — Eu também tenho medo.

No dia seguinte acordei cedo e fui ao mercado comprar pão fresco e flores para a avó. Quando voltei, encontrei-a sentada à mesa com uns papéis à frente.

— Nora — chamou-me ela com voz firme. — Senta-te aqui comigo.

Sentei-me devagar, sentindo um nó no estômago.

— Estive a pensar no que disseste ontem — começou ela. — E percebo os teus medos. Mas também percebo os da tua mãe. Por isso decidi fazer testamento: metade do apartamento será teu, metade será dela. Assim nenhuma das duas fica desamparada.

Senti uma mistura estranha de alívio e tristeza. Queria tudo só para mim? Talvez sim… talvez não. Queria justiça pelo abandono? Ou só queria sentir-me segura?

Quinn entrou na cozinha nesse momento e percebeu logo o ambiente pesado.

— O que se passa?

Gabriela explicou-lhe calmamente a decisão. Vi lágrimas nos olhos da minha mãe — ou talvez fossem só reflexos da luz matinal.

— Obrigada, mãe — disse ela baixinho.

Eu não disse nada. Levantei-me e fui até à janela olhar lá para fora, para as ruas do bairro onde cresci.

A vida nunca é simples como queremos. Às vezes as pessoas voltam quando menos esperamos; às vezes temos de partilhar aquilo que achávamos ser só nosso.

Agora pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente quem nos abandonou? Ou será que passamos a vida inteira à espera de uma justiça impossível?

E vocês? Já sentiram este medo de perder aquilo que mais amam?