O Dia em Que o Meu Pai Esqueceu Que Eu Existia
— Não me lembrava que hoje era o teu aniversário. — A voz do meu pai soou seca, quase indiferente, como se dissesse que esqueceu de comprar pão.
Fiquei ali, parada à porta do café, com as mãos a tremer e o coração a bater tão forte que temi que ele ouvisse. Tantos anos a imaginar este momento, a ensaiar discursos, perguntas, acusações. E agora, tudo o que conseguia fazer era olhar para ele e tentar encontrar traços do homem que me deixou quando eu tinha sete anos.
Quando era pequena, todos diziam que eu tinha os olhos dele. Cinzentos, como o céu antes da tempestade. A minha avó repetia que até os meus gestos eram iguais aos dele — “até os dedos tens iguais ao teu pai, menina”. Durante muito tempo, isso bastou-me. Porque não tinha mais nada dele. Nem cartas, nem telefonemas, nem sequer uma fotografia recente.
O meu pai saiu de casa numa manhã de novembro. Não houve gritos, nem pratos partidos. Só um silêncio estranho, pesado, e a mala dele encostada à porta. Lembro-me de perguntar à minha mãe onde é que ele ia. Ela respondeu apenas: “Vai embora, Inês.” E eu fiquei ali, com uma boneca na mão e um buraco no peito.
Cresci a ouvir desculpas esfarrapadas. “O teu pai tem muito trabalho.” “O teu pai está a passar uma fase difícil.” “O teu pai não sabe lidar com certas coisas.” Mas nunca ninguém me explicou porque é que ele não sabia lidar comigo.
Os anos passaram. Vi a minha mãe envelhecer depressa demais, a tentar ser mãe e pai ao mesmo tempo. Vi a minha avó chorar baixinho na cozinha quando pensava que eu não ouvia. Vi os meus amigos a serem buscados pelos pais à escola e inventei mil histórias para justificar porque é que o meu nunca aparecia.
Quando fiz dezoito anos, decidi procurá-lo. Não por saudade — essa já tinha morrido há muito — mas por necessidade de fechar um ciclo. Liguei-lhe no dia do meu aniversário. Atendeu ao terceiro toque.
— Sim?
— Olá… Pai? Sou eu, a Inês.
Silêncio do outro lado.
— Inês…? Ah… Olá.
— Queria saber se podemos falar. Encontrar-nos.
— Agora? Hoje?
— Sim… Hoje faço anos.
Outro silêncio. Depois um suspiro resignado.
— Está bem. Diz-me onde.
Escolhi um café discreto no centro de Lisboa, longe de olhares conhecidos. Cheguei cedo demais e passei vinte minutos a olhar para a porta, a imaginar se ele viria mesmo. Quando finalmente entrou, reconheci-o logo: mais velho, mais magro, mas com os mesmos olhos cinzentos.
Sentou-se à minha frente sem sorrir.
— Então…
— Então… — repeti, sem saber por onde começar.
Durante minutos intermináveis só se ouviu o barulho das chávenas e dos talheres dos outros clientes. Ele olhava para as mãos, eu para a janela. Finalmente arrisquei:
— Porque é que foste embora?
Ele encolheu os ombros.
— Não sei… As coisas estavam difíceis com a tua mãe. Eu não sabia ser pai. Achei que era melhor assim.
— Melhor para quem?
Ele não respondeu.
A raiva subiu-me à garganta como um grito preso há anos.
— Sabes quantas vezes esperei por ti? Quantas vezes sonhei que batias à porta?
Ele passou as mãos pelo rosto, cansado.
— Inês… Eu tentei seguir em frente. Achei que tu também ias conseguir.
Olhei para ele como se fosse um estranho — e era mesmo. Um homem que não sabia o nome dos meus amigos, que nunca viu as minhas peças de teatro na escola, que não fazia ideia do meu prato favorito ou das músicas que eu ouvia para adormecer quando sentia saudades dele.
— Não me lembrava que hoje era o teu aniversário — repetiu ele, como se isso fosse desculpa suficiente para tudo o resto.
Nesse momento percebi que nunca ia ter as respostas que queria. Que talvez não houvesse respostas possíveis para quem escolhe partir e nunca mais olha para trás.
Levantei-me devagar, sentindo-me mais leve e mais pesada ao mesmo tempo.
— Adeus, pai.
Ele ficou sentado, sem se mexer, enquanto eu saía do café e deixava para trás todos os aniversários esquecidos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar quem nunca fez questão de ficar? Ou será que há feridas que nem o tempo consegue sarar?