O Dia em que o Meu Pai Bateu à Porta com as Malas na Mão

— O que é que estás aqui a fazer, pai? — perguntei, a voz embargada, enquanto olhava para ele parado à minha porta, encharcado pela chuva, com duas malas grandes e um saco de plástico do Pingo Doce. O cheiro a terra molhada misturava-se com o perfume antigo dele, aquele aroma que me fazia lembrar os domingos de infância, quando ainda éramos uma família.

Ele não respondeu logo. Olhou-me nos olhos, como se procurasse ali uma resposta que nem ele sabia formular. — Filha, preciso de ficar aqui uns tempos. Vendi a casa. — As palavras saíram-lhe num sussurro, quase como se tivesse vergonha.

Senti o chão fugir-me dos pés. Vendi a casa? A nossa casa? Aquela onde cresci, onde a mãe morreu, onde ele me ensinou a andar de bicicleta no quintal? — Como assim vendeste a casa? Sem me dizeres nada? — A minha voz subiu de tom, mas ele apenas baixou os olhos.

— Não tinha outra hipótese, Marta. As dívidas… — murmurou, mas eu já nem ouvia. Só conseguia pensar em como tudo aquilo era típico dele: tomar decisões sozinho, sem consultar ninguém, sem pensar nas consequências para os outros.

Deixei-o entrar. O meu apartamento era pequeno demais para dois adultos e todos os fantasmas que ele trazia consigo. Enquanto ele pousava as malas no corredor apertado, lembrei-me das últimas vezes em que tínhamos falado: discussões rápidas ao telefone, acusações veladas sobre o passado, silêncios desconfortáveis. Nunca fomos bons a comunicar.

Naquela noite, sentámo-nos à mesa da cozinha. Ele mexia no chá sem beber, eu olhava para as mãos dele — mãos de trabalhador, calejadas pelos anos na construção civil. — Pai, porque não me disseste nada? — perguntei de novo.

Ele encolheu os ombros. — Não queria preocupar-te. Achei que conseguia resolver sozinho. Mas depois… depois já era tarde demais.

O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Lembrei-me da mãe, da forma como ela sempre tentava mediar as nossas discussões. Desde que ela morreu, éramos só nós dois — e nunca soubemos lidar com isso.

Os dias seguintes foram um teste à minha paciência e à nossa relação. O meu pai ocupava o sofá da sala, via televisão até tarde e deixava migalhas pela cozinha. Eu chegava do trabalho exausta e encontrava-o a resmungar sobre o preço do pão ou sobre os vizinhos barulhentos. Cada pequeno atrito era uma faísca prestes a incendiar tudo.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia lavar a loiça, explodi:

— Não sou tua mãe! Não sou tua empregada! Não podes simplesmente aparecer aqui e esperar que eu resolva tudo!

Ele ficou calado durante uns segundos longos demais. Depois levantou-se devagar e foi até à janela. — Eu sei que não és tua mãe. E sei que falhei contigo muitas vezes. Mas agora não tenho mais ninguém.

Aquelas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Não tenho mais ninguém. Era verdade: depois da morte da mãe, afastámo-nos dos poucos familiares que restavam. Os amigos dele desapareceram com o tempo e as dificuldades financeiras.

Comecei a reparar nos pequenos gestos dele: como arrumava as minhas compras sem eu pedir, como deixava bilhetes com lembretes para eu não me esquecer do guarda-chuva ou do almoço. Um dia encontrei-o sentado no meu quarto, a olhar para uma fotografia antiga nossa.

— Lembras-te deste dia? — perguntou ele, mostrando-me a foto do nosso piquenique em Sintra.

— Lembro — respondi, sentindo um nó na garganta. — Foi antes de tudo mudar.

Ele suspirou. — Gostava de voltar atrás e fazer as coisas de outra maneira.

Eu também gostava. Gostava de ter tido coragem para lhe dizer o quanto me magoou quando se fechou em si mesmo depois da morte da mãe; gostava de ter insistido mais para irmos juntos ao médico quando ele começou a beber demais; gostava de ter dito que precisava dele presente, não só fisicamente mas emocionalmente.

Mas agora era tarde para tudo isso? Ou ainda havia tempo para recomeçar?

As semanas passaram e fomos aprendendo a conviver. Ele começou a procurar trabalho — qualquer coisa para se sentir útil — e eu tentei ser menos dura nas palavras. Mas havia dias em que tudo parecia demasiado pesado: as contas acumulavam-se, o espaço parecia encolher e os velhos ressentimentos voltavam à superfície.

Uma tarde, cheguei a casa mais cedo e encontrei-o sentado à mesa com uma carta na mão. Tinha lágrimas nos olhos — algo raro nele.

— O que se passa? — perguntei, sentando-me ao lado dele.

Ele mostrou-me a carta: era do banco, recusando-lhe um empréstimo para tentar alugar um quarto noutro lado.

— Não quero ser um peso para ti, Marta. Já te causei problemas suficientes.

Abracei-o pela primeira vez em anos. Senti o corpo dele tremer nos meus braços e percebi que por trás daquela fachada dura havia um homem assustado e perdido.

— Não és um peso. Só queria que tivesses confiado em mim antes de tudo isto acontecer.

Ele assentiu devagar. — Eu também queria.

Nessa noite jantámos juntos em silêncio, mas pela primeira vez senti que estávamos realmente juntos — não apenas a partilhar o mesmo espaço, mas a tentar reconstruir alguma coisa.

Os meses seguintes foram feitos de altos e baixos: ele arranjou um trabalho temporário numa obra; eu consegui uma promoção no escritório; discutimos menos e rimos mais. Começámos até a sair juntos ao domingo para passear no parque ou ir ao mercado da Ribeira.

Mas nem tudo era fácil: havia dias em que ele se fechava no quarto durante horas; outros em que eu sentia vontade de gritar com ele por coisas pequenas. A ferida do passado estava longe de sarar.

Um dia recebi uma chamada do hospital: o meu pai tinha tido um desmaio na obra. Corri para lá com o coração nas mãos. Quando cheguei ao quarto dele, vi-o frágil como nunca antes.

— Desculpa por te preocupar outra vez — murmurou ele.

Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão. — Não tens de pedir desculpa por precisares de mim.

Ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Pela primeira vez desde aquela noite chuvosa em que apareceu à minha porta, senti que talvez pudéssemos encontrar um novo começo.

Agora olho para trás e penso: quantas famílias vivem presas em silêncios e mágoas antigas? Quantas vezes deixamos para amanhã conversas que podiam mudar tudo?

Será que ainda vamos a tempo de perdoar quem amamos antes que seja tarde demais?