O Dia em que o Meu Nome Desapareceu do Testamento

“Pai, não podes continuar assim! Olha para ti, já não consegues subir as escadas sem te cansares!” gritei, a voz embargada pela frustração e pelo medo. O meu pai, António, olhou-me com aqueles olhos cansados, mas ainda orgulhosos. “João, esta é a minha casa. Aqui vivi com a tua mãe, aqui criei-vos. Não me peças para sair.”

A sala cheirava a café frio e a memórias antigas. As fotografias na parede pareciam observar-nos, testemunhas silenciosas de uma família que já não era o que fora. A minha irmã, Mariana, estava sentada no sofá, os olhos vermelhos de tanto chorar. “João, talvez devêssemos ouvir o pai…”, murmurou ela. Mas eu já tinha tomado uma decisão. “Não podemos continuar assim. Ele precisa de cuidados. Não temos tempo, nem condições. O lar é a melhor opção.”

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. O meu pai baixou a cabeça e eu senti uma pontada de culpa, mas tentei ignorá-la. Afinal, estava a fazer o melhor para todos, não estava? Ou pelo menos era isso que me convencia.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A Mariana afastou-se de mim, recusando-se a falar sobre o assunto. O meu pai ficou calado, resignado. No dia em que o levei ao lar de idosos em Sintra, chovia torrencialmente. Ele não disse uma palavra durante a viagem. Quando chegámos, olhou-me nos olhos e disse apenas: “Espero que um dia entendas.”

O tempo passou devagar. Visitava-o uma vez por semana, sempre com pressa, sempre com desculpas para sair cedo. A Mariana ia todos os dias. Levava-lhe bolos caseiros, lia-lhe o jornal, fazia-lhe companhia. Eu dizia a mim mesmo que ela tinha mais tempo livre, que era natural ser ela a cuidar dele.

Um ano depois, o meu pai morreu. O funeral foi simples, mas cheio de gente. Muitos vieram dar-me os pêsames, mas poucos me olharam nos olhos. Senti-me estranho, deslocado na minha própria família.

Depois do funeral, reuni-me com o advogado da família para tratar do testamento. Entrei no escritório com o coração acelerado. Sempre soube que o meu pai tinha algum dinheiro guardado e aquela casa antiga em Lisboa valia uma fortuna agora.

O advogado, Dr. Mário Costa, olhou-me por cima dos óculos e pediu-me para me sentar. A Mariana já lá estava, com um ar sereno que me irritou profundamente.

“Vamos então proceder à leitura do testamento do senhor António Silva”, começou ele.

Ouvi cada palavra como se estivesse debaixo de água. Quando chegou ao fim, senti o chão fugir-me dos pés:

“Deixo todos os meus bens à minha filha Mariana Silva.”

Fiquei em silêncio durante alguns segundos, incapaz de processar o que acabara de ouvir.

“Desculpe… deve haver algum engano”, balbuciei.

O advogado abanou a cabeça. “Não há engano, João. O seu pai alterou o testamento há seis meses.”

Virei-me para a Mariana, furioso. “Foste tu! Convenceste-o a tirar-me do testamento!”

Ela levantou-se devagar e olhou-me nos olhos como nunca antes.

“Não precisei de convencer ninguém, João. O pai sentiu-se abandonado por ti. Eu só estive lá quando ele precisou.”

As palavras dela cortaram-me como facas. Tentei argumentar, justificar as minhas escolhas: o trabalho, os filhos pequenos, as contas para pagar… Mas nada disso parecia importar agora.

Saí do escritório atordoado. Durante semanas vivi num nevoeiro de raiva e vergonha. Evitava os telefonemas da família e os olhares dos vizinhos. Sentia-me traído e injustiçado.

Mas aos poucos comecei a perceber tudo aquilo que tinha perdido muito antes do testamento ser lido: perdi o respeito do meu pai, perdi a confiança da minha irmã e perdi a oportunidade de fazer parte dos últimos anos da vida dele.

Lembrei-me das tardes em que ele me ensinava a andar de bicicleta no parque das Nações, das noites em que ficávamos acordados a ver futebol na televisão antiga da sala… E percebi que nenhuma herança poderia substituir esses momentos.

Um dia bati à porta da Mariana. Ela abriu-a com um olhar desconfiado.

“Preciso de falar contigo”, disse-lhe.

Sentámo-nos à mesa da cozinha onde tantas vezes tínhamos discutido quando éramos crianças.

“Desculpa”, murmurei finalmente. “Desculpa por tudo.”

Ela ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:

“O pai só queria sentir-se amado e acompanhado nos últimos tempos. Não era dinheiro ou casas que lhe importavam.”

Chorei pela primeira vez desde miúdo.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos de nós trocamos tempo por dinheiro? Quantos deixamos para amanhã aquilo que só pode ser feito hoje? Será que alguma vez conseguiremos perdoar-nos pelas escolhas erradas?

E vocês? O que fariam no meu lugar?