O Dia em que o Meu Mundo Virou do Avesso: Um Telemóvel Perdido e um Encontro Inesperado

— Não faças isso, Miguel! — gritou a minha mãe ao telefone, a voz trémula, quase suplicante. Eu estava sentado num banco do Jardim da Estrela, o telemóvel velho na mão, os olhos fixos no chão coberto de folhas secas. O outono em Lisboa tinha sempre este cheiro agridoce de terra molhada e promessas por cumprir.

— Mãe, eu não posso continuar a enviar dinheiro todas as semanas. O estágio não paga quase nada e as propinas estão atrasadas — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar. Do outro lado, silêncio. Sabia que ela estava a chorar, mas não podia ceder. Não desta vez.

Foi então que ouvi uma voz suave ao meu lado:

— Precisas de ajuda?

Levantei os olhos e vi uma rapariga de cabelo castanho-escuro, olhos grandes e um sorriso tímido. Devia ter a minha idade, talvez um pouco mais nova. Vestia um casaco verde-escuro e segurava um livro de poesia portuguesa.

— Desculpa, não queria interromper — disse ela, recuando um passo.

— Não faz mal… — murmurei, desligando o telefone. — Só estava…

— A falar com alguém importante — completou ela, com um olhar compreensivo.

Sorri, sem saber bem porquê. Talvez porque era raro alguém reparar em mim sem esperar nada em troca.

— O meu nome é Inês — apresentou-se, estendendo a mão.

Apertei-a, sentindo uma estranha electricidade no toque.

— Miguel.

Conversámos durante alguns minutos sobre livros, sobre o tempo estranho daquele outono e sobre como Lisboa parecia sempre demasiado grande para quem se sentia pequeno. Quando me levantei para ir embora, o telemóvel escorregou-me das mãos e caiu no chão. A tampa saltou, a bateria rolou para debaixo do banco.

— Deixa estar, eu apanho — disse Inês, já de joelhos.

Enquanto ela procurava a bateria, reparei como as mãos dela tremiam ligeiramente. Quando finalmente me devolveu o telemóvel montado, sorriu de novo.

— Espero que funcione…

— Este velho guerreiro já sobreviveu a quedas piores — brinquei.

Despedi-me dela com um aceno e segui para casa. Não fazia ideia de que aquele encontro ia mudar tudo.

Na manhã seguinte, acordei com o som insistente do despertador. O telemóvel estava morto. Tentei ligá-lo várias vezes, mas nada. Fiquei sem acesso ao email da faculdade, sem contactos, sem nada. Senti-me nu.

No caminho para a universidade, passei pelo parque na esperança de encontrar Inês. Não estava lá. Passei o dia inteiro ansioso, como se tivesse deixado uma parte de mim naquele banco.

À noite, ao chegar ao quarto minúsculo que alugava em Arroios, encontrei um envelope por baixo da porta. O meu nome escrito à mão. Dentro, um bilhete:

“Encontrei-te no parque e acho que te posso ajudar. Amanhã às 18h no mesmo banco. — Inês”

O coração disparou. Como é que ela sabia onde eu morava? Tinha visto o meu cartão de estudante quando apanhou o telemóvel? Senti um misto de medo e curiosidade.

No dia seguinte, cheguei ao parque antes da hora. Inês já lá estava, sentada com o meu telemóvel nas mãos.

— Consegui arranjar — disse ela, sorrindo. — O problema era só a bateria solta.

Agradeci-lhe mil vezes. Ela hesitou antes de falar:

— Miguel… posso perguntar-te uma coisa? Porque é que estavas tão triste ontem?

Fiquei calado durante uns segundos. Depois contei-lhe tudo: os meus pais desempregados em Viseu, as dívidas acumuladas, o peso de ser o único filho na universidade, as noites em branco a trabalhar num café para pagar as contas.

Ela ouviu tudo em silêncio. No fim, pousou a mão sobre a minha.

— Sabes… também carrego os meus próprios fantasmas — confessou. — O meu pai morreu há dois anos e a minha mãe nunca mais foi a mesma. Às vezes sinto-me tão sozinha nesta cidade…

Ficámos ali sentados até anoitecer, partilhando silêncios e mágoas. Pela primeira vez em muito tempo senti-me compreendido.

Nas semanas seguintes tornámo-nos inseparáveis. Estudávamos juntos na biblioteca da faculdade de Letras, ríamos das nossas desgraças enquanto bebíamos café barato na esplanada do costume. Inês era luz nos meus dias escuros.

Mas nem tudo era perfeito. O dinheiro continuava a faltar e os meus pais pressionavam cada vez mais:

— Miguel, precisamos mesmo desse dinheiro para pagar a renda! — gritava o meu pai ao telefone.

Comecei a faltar às aulas para fazer mais turnos no café. As notas desceram. Inês reparou logo:

— Não podes continuar assim… vais rebentar.

— Não tenho escolha — respondi seco.

Ela afastou-se um pouco depois disso. Senti-me traído e sozinho outra vez.

Numa noite fria de dezembro recebi uma mensagem anónima: “Se queres resolver os teus problemas, aparece amanhã às 22h no Miradouro da Senhora do Monte.”

O medo misturou-se com esperança: seria Inês? Ou alguém do café? Fui mesmo assim.

Quando cheguei ao miradouro, vi Inês encostada à grade, os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Porque me chamaste aqui? — perguntei.

Ela hesitou antes de responder:

— Descobri uma coisa sobre ti… sobre o teu pai.

O chão fugiu-me dos pés.

— O quê?

Inês tirou do bolso uma carta antiga com o carimbo dos Serviços Sociais de Viseu.

— Encontrei isto dentro do teu telemóvel quando tentei arranjá-lo… Não resisti a ler. Desculpa.

Arranquei-lhe a carta das mãos e li as palavras que sempre temi encarar: “Pedido de apoio social recusado por fraude comprovada.”

O meu pai tinha mentido sobre estar desempregado. Tinha sido despedido por roubo numa fábrica local e nunca me contou nada disso. Todo aquele tempo eu sacrificara tudo por uma mentira.

Senti raiva, vergonha e uma tristeza profunda como nunca antes.

— Porque não me disseste logo? — gritei com Inês.

Ela chorava baixinho:

— Tive medo de te perder…

Afastei-me dela naquela noite. Passei dias sem comer nem dormir direito. No café já nem me reconheciam; na faculdade deixei de aparecer.

Foi só quando recebi uma mensagem da minha mãe — “Perdoa-nos” — que percebi que precisava enfrentar tudo aquilo de frente.

Voltei ao parque onde tudo começou e encontrei Inês sentada no mesmo banco.

— Desculpa — disse eu primeiro. — Fui injusto contigo… Só não sabia lidar com tudo isto.

Ela sorriu tristemente:

— Ninguém sabe, Miguel. Mas podemos tentar juntos?

Sentei-me ao lado dela e ficámos ali até o sol nascer sobre Lisboa.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que os segredos dos outros definam quem somos? Será possível recomeçar quando tudo à nossa volta parece ruir? Talvez nunca saiba as respostas certas… Mas sei que não quero voltar a fugir.