O Dia em que o Meu Mundo Ruiu no Quintal dos Meus Pais

— Não é meu filho, Mariana! — O grito do Rui ecoou pelo quintal, abafando até o som da grelha a chiar. Eu estava com o pequeno Tomás ao colo, sentindo o olhar de toda a família pousado em mim como pedras. O cheiro da carne assada misturava-se ao suor frio que me escorria pelas costas. A minha mãe, D. Lurdes, largou o prato de salada russa e ficou a olhar para mim, olhos arregalados, como se eu tivesse acabado de confessar um crime.

O Rui nunca foi de grandes emoções, mas naquele dia, parecia um estranho. O nosso namoro tinha começado na universidade do Porto, entre cafés apressados e noites de estudo. Sempre achei que éramos feitos um para o outro, até ao dia em que engravidei. No início, ele ficou feliz, ou pelo menos fingiu bem. Mas quando o Tomás nasceu — com os olhos claros como os do meu avô materno — começaram as dúvidas.

— Não me venhas com histórias, Mariana. Toda a gente sabe que andaste muito próxima do Hugo naquela altura — insistiu ele, voz trémula de raiva.

O Hugo era só um amigo, mas para o Rui, qualquer sombra era tempestade. A minha irmã mais nova, a Sofia, tentou intervir:

— Rui, por amor de Deus! Achas mesmo que a Mariana te fazia uma coisa dessas?

Ele virou-se para ela, olhos vermelhos:

— Não me metas nisso, Sofia! Isto é entre mim e ela.

O silêncio caiu pesado. O meu pai, sempre tão calmo, limpou as mãos ao avental e aproximou-se:

— Rui, se tens dúvidas, faz-se um teste de ADN. Mas não vais continuar a tratar a Mariana assim à frente de toda a gente.

O Rui hesitou. Olhou para mim e para o Tomás — que dormia alheio ao caos — e murmurou:

— Está bem. Quero o teste.

Os dias seguintes foram um inferno. O Rui mal me falava. Dormia no sofá da sala e evitava olhar para o nosso filho. A minha mãe tentava consolar-me:

— Filha, quem não deve não teme. Vais ver que tudo se resolve.

Mas eu sentia-me suja, julgada por todos. Até os vizinhos começaram a cochichar quando me viam na rua.

No laboratório, o técnico foi frio e metódico. Recolheu amostras nossas como se estivéssemos num tribunal. O Rui nem sequer me acompanhou à porta. Voltei para casa sozinha com o Tomás ao colo e uma dor no peito que não passava.

A espera foi interminável. Cada vez que o telefone tocava, sentia o coração saltar-me pela boca. O Rui continuava distante. Uma noite ouvi-o ao telefone com a mãe dele:

— Ela enganou-me, mãe. Tenho quase a certeza…

Chorei baixinho no quarto do Tomás para ele não acordar.

Quando finalmente recebi o envelope com os resultados, senti as pernas tremerem. Podia ter aberto logo ali, mas decidi esperar pelo churrasco de domingo — aquele ritual sagrado da nossa família. Queria que todos vissem a verdade.

No domingo, o quintal estava cheio: tios, primos, vizinhos curiosos. O Rui estava lá, de braços cruzados e cara fechada. Esperei até todos estarem sentados à mesa antes de falar.

— Tenho uma coisa para dizer — anunciei, segurando o envelope com mãos trémulas.

O burburinho calou-se. Senti todos os olhos em mim.

— Aqui estão os resultados do teste de ADN — disse, olhando diretamente para o Rui. — Vou ler em voz alta para não restarem dúvidas.

Abri o envelope devagar. As palavras dançavam à minha frente:

“Compatibilidade genética: 99,99%. Rui Manuel Ferreira é o pai biológico de Tomás.”

Olhei para ele. O rosto dele ficou branco como cal.

— Então? — perguntei, voz embargada.

O Rui não disse nada. A minha mãe levantou-se e abraçou-me com força.

— Sempre confiei em ti, filha.

Mas eu só conseguia olhar para o Rui à espera de um pedido de desculpa que nunca veio. Ele largou a cadeira e saiu do quintal sem olhar para trás.

Os outros começaram a falar todos ao mesmo tempo:

— Que vergonha!
— Sempre achei que ela era séria.
— O Rui nunca devia ter desconfiado…

A Sofia veio ter comigo:

— Mariana… desculpa por não ter feito mais.

Abracei-a em silêncio. O Tomás acordou e começou a chorar. Peguei nele ao colo e afastei-me da confusão.

Naquela noite, sentei-me sozinha na varanda com o meu filho nos braços. Senti-me vazia e exausta. Tinha provado a minha inocência mas perdi o homem que amava — ou talvez nunca tivesse realmente tido o amor dele.

Pergunto-me: quantas mulheres passam por isto todos os dias? Quantas vezes temos de gritar a nossa verdade para sermos ouvidas? Se fosse contigo… perdoavas?