O Dia em que o Meu Mundo Ruiu: Entre o Amor de Mãe e o Amor de Esposa
— Não é uma questão de escolha, Mariana! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas contidas. — A minha mãe precisa de nós!
Eu tremia. Oiço ainda o eco da minha própria voz, baixa, quase suplicante: — Rui, por favor… Temos dois filhos pequenos. A tua mãe está doente, eu sei, mas ela precisa de cuidados especializados. Não podemos simplesmente trazê-la para cá e fingir que conseguimos dar conta de tudo!
Ele virou-me as costas, os ombros tensos, como se carregasse o peso do mundo. — Não vou deixá-la sozinha. Não depois de tudo o que ela fez por mim.
Naquele instante, percebi que o meu casamento estava por um fio. O cheiro do jantar queimado enchia a cozinha, mas ninguém se importava. Os miúdos, o Tomás e a Leonor, brincavam na sala, alheios à tempestade que se abatia sobre nós.
A mãe do Rui, a Dona Emília, sempre foi uma presença forte. Viúva desde cedo, criou-o sozinha, trabalhando dias e noites numa fábrica de calçado em Felgueiras. Eu admirava-lhe a força, mas também temia a sua língua afiada e os olhares de julgamento. Desde o início do nosso namoro, sentia-me uma intrusa no mundo deles.
Quando soubemos que ela tinha Alzheimer, o Rui mudou. Passou a ir vê-la todos os dias, a trazer-lhe compras, a pagar contas. Eu compreendia — ou achava que compreendia — até ao dia em que ele chegou a casa com a decisão tomada.
— Ela vem viver connosco. Não há mais volta a dar.
Senti-me traída. Não porque não gostasse da Dona Emília, mas porque ninguém me perguntou se eu estava preparada. O nosso apartamento era pequeno, as crianças precisavam de espaço e rotina. Eu própria andava exausta, entre o trabalho no hospital e as noites mal dormidas.
— E se ela se perder? E se fizer mal às crianças sem querer? — arrisquei perguntar.
O Rui olhou-me como se eu fosse um monstro. — Como podes dizer uma coisa dessas? É a minha mãe!
As semanas seguintes foram um inferno silencioso. A Dona Emília chegou com duas malas e um olhar perdido. Às vezes reconhecia-nos, outras vezes gritava com os miúdos ou tentava sair de casa sozinha. Eu sentia-me prisioneira na minha própria casa. O Rui tornara-se um estranho: frio comigo, sempre do lado da mãe.
Uma noite, acordei com um barulho na cozinha. Encontrei a Dona Emília a tentar acender o fogão com um pano na mão. O cheiro a gás era intenso. Corri para desligar tudo e levei-a de volta ao quarto. O coração batia-me descompassado.
No dia seguinte, tentei falar com o Rui:
— Isto não pode continuar assim. É perigoso para todos!
Ele não me ouviu. — Se não consegues lidar com isto, talvez fosses tu quem devia sair.
Foi como levar um murro no estômago. Passei dias a chorar no banho para não assustar as crianças. Sentia-me egoísta por querer paz, mas também injustiçada por ninguém ver o meu lado.
A tensão crescia. A Leonor começou a fazer xixi na cama outra vez; o Tomás fechava-se no quarto com os auscultadores nos ouvidos. Eu sentia-me cada vez mais sozinha.
Uma tarde, ao chegar do trabalho, encontrei a Dona Emília sentada na rua, descalça e confusa. Os vizinhos olhavam com pena e julgamento. Senti vergonha — dela, de mim, da nossa família desfeita.
Nessa noite, explodi:
— Rui, isto não é vida! Nem para nós, nem para ela! Precisamos de ajuda!
Ele levantou-se da mesa e atirou o prato ao chão. — Se não aguentas, vai-te embora! Eu fico com a minha mãe!
E foi isso que fiz. Arrumei algumas roupas minhas e das crianças e fui para casa da minha irmã em Matosinhos. O Rui não me ligou nos dias seguintes. Só recebi uma mensagem seca: “Espero que estejas feliz agora”.
Os miúdos perguntavam pelo pai; eu respondia com mentiras piedosas. Sentia-me culpada por tudo: por ter desistido, por não ser forte como a Dona Emília fora para o Rui.
O divórcio foi rápido e doloroso. O Rui ficou com o apartamento e com a mãe; eu fiquei com as crianças e um vazio impossível de preencher.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se eu tivesse cedido mais? Se tivesse engolido o medo e o cansaço? Ou será que merecia lutar pelo meu próprio bem-estar?
Às vezes sonho com o Rui — com aquele rapaz doce que me prometeu amor eterno numa tarde de verão em Vila do Conde. Mas esse rapaz desapareceu algures entre as paredes apertadas do nosso apartamento e as exigências de uma doença cruel.
Agora vivo num T2 alugado, faço turnos extra para pagar as contas e tento dar aos meus filhos alguma estabilidade. A Leonor já não faz xixi na cama; o Tomás voltou a sorrir de vez em quando.
Mas à noite, quando tudo está em silêncio, ainda me pergunto: fui egoísta por querer proteger os meus filhos? Ou simplesmente humana?
E vocês? Até onde iriam para salvar uma família — mesmo que isso significasse perder-se a si próprios?