O Dia em que o Meu Mundo Parou no Supermercado

— Dona Maria, são duzentos e cinquenta euros, por favor — disse a rapariga da caixa, com um sorriso cansado, enquanto passava o último pacote de arroz pelo leitor. Senti o olhar de alguns clientes atrás de mim, impacientes, a medir cada segundo que eu demorava. O meu coração batia mais rápido do que o normal, mas tentei manter a compostura. Afinal, sempre fui conhecida pela minha elegância e serenidade, mesmo agora, aos setenta e oito anos.

Abri a mala devagar, procurando a carteira entre lenços de papel, recibos antigos e uma fotografia desbotada do meu falecido António. O cheiro a lavanda misturava-se com o perfume dos pães frescos ao meu lado. Mas a carteira… não estava lá. Senti um frio súbito na espinha. Revirei tudo, as mãos a tremer, enquanto a fila crescia e os suspiros se tornavam mais audíveis.

— Precisa de ajuda, minha senhora? — perguntou a funcionária, agora com um tom mais baixo, talvez por compaixão ou constrangimento.

— Eu… eu tinha a carteira aqui… — murmurei, sentindo as bochechas arderem de vergonha. — Tenho a certeza que a trouxe…

Atrás de mim, uma senhora de meia-idade cochichava para o marido: — Isto é sempre assim, vêm para aqui sem dinheiro e depois atrasam toda a gente.

Senti-me pequena. Lembrei-me dos tempos em que era eu quem ajudava os outros, quem pagava as compras à vizinha do lado quando ela esquecia o porta-moedas. Agora era eu o motivo do incómodo.

— Se calhar caiu no carro — sugeriu a funcionária.

— Não vim de carro… vim a pé — respondi, tentando não chorar.

O gerente aproximou-se, atraído pela confusão. — Algum problema?

Expliquei-lhe o que se passava. Ele olhou para mim com desconfiança, como se eu fosse uma ladra disfarçada de avó. — Não podemos deixar os produtos aqui muito tempo. Tem alguém que possa vir pagar?

Pensei nos meus filhos. O João estava em Lisboa, sempre ocupado com reuniões e viagens. A Ana… bem, desde aquela discussão sobre a casa de repouso, mal falávamos. Senti uma pontada no peito ao lembrar-me disso.

— Posso ligar para alguém? — perguntou o gerente.

— Não… não tenho ninguém por perto — admiti, baixando os olhos.

O ambiente ficou pesado. Uma criança começou a chorar na fila. Alguém sugeriu chamar a polícia. Outra pessoa disse que eu devia ser multada por fazer perder tempo aos outros.

De repente, senti uma tontura. O chão parecia afastar-se dos meus pés. Ouvi vozes distantes:

— Ela está pálida!
— Chamem uma ambulância!

Acordei com luzes brancas por cima de mim e um cheiro forte a desinfetante. Estava deitada numa maca, rodeada por paramédicos e um polícia jovem que me olhava com preocupação.

— Dona Maria? Consegue ouvir-me?

Assenti devagar. O coração ainda batia descompassado.

— Teve um pequeno desmaio. Está tudo bem agora — disse o paramédico.

O polícia aproximou-se e perguntou:

— Tem alguém da família que possamos contactar?

Senti-me invadida por uma tristeza profunda. Onde estavam todos quando eu mais precisava? Porque é que envelhecer tinha de ser assim tão solitário?

Enquanto esperava na ambulância pelo resultado dos exames, ouvi o gerente do supermercado falar ao telefone:

— Sim, ela está bem… Não, não sabemos se foi mesmo um esquecimento ou outra coisa…

Senti-me julgada sem direito a defesa. Lembrei-me da última vez que estive com a Ana. Tínhamos discutido porque ela queria que eu vendesse a casa onde vivi toda a minha vida para ir para um lar. Disse-lhe que preferia morrer sozinha do que abandonar as minhas memórias. Agora, ali estava eu: sozinha e vulnerável.

O polícia voltou:

— Dona Maria, encontramos a sua carteira caída junto à banca das frutas. Alguém entregou-a na receção.

Senti um alívio misturado com vergonha. Tanta confusão por causa de um simples descuido.

Quando finalmente me deixaram sair da ambulância, voltei ao supermercado para pagar as compras. A funcionária sorriu-me timidamente.

— Ainda bem que está melhor…

Paguei em silêncio e saí para a rua fria de março. O saco das compras parecia mais pesado do que nunca.

No caminho para casa, cruzei-me com vizinhos apressados que mal me cumprimentaram. Senti uma solidão cortante. Pensei em ligar à Ana, pedir desculpa pela discussão e dizer-lhe que tinha razão: talvez já não fosse seguro viver sozinha.

Mas depois lembrei-me do António e das tardes felizes naquela casa cheia de risos e cheiros de comida caseira. Será que era justo abandonar tudo isso só porque envelheci?

Cheguei a casa exausta e sentei-me à mesa da cozinha. Olhei para as compras e chorei baixinho, sem saber se era tristeza ou alívio.

No fundo, pergunto-me: quantos de nós já se sentiram invisíveis no meio da multidão? Será que envelhecer tem mesmo de ser sinónimo de solidão? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…