O Dia em que o Meu Mundo Parou no Supermercado
— Dona Amélia, a senhora tem a certeza de que trouxe o cartão? — perguntou a rapariga da caixa, com um sorriso forçado, enquanto os clientes atrás de mim começavam a resmungar.
Senti o calor subir-me ao rosto. As mãos tremiam-me ligeiramente quando procurei na mala. O barulho dos sacos de plástico, o bip constante das caixas registadoras, as vozes impacientes atrás de mim — tudo parecia amplificado. O meu coração batia tão forte que temi que todos à minha volta o ouvissem.
— Tenho, menina, tenho… — murmurei, tentando manter a compostura. Mas o cartão não estava lá. Nem o porta-moedas. Nem sequer as notas que costumo guardar no bolso interior do casaco. Senti um nó na garganta. Como é possível? Tinha a certeza de que os tinha posto ali antes de sair de casa.
A fila crescia. Uma senhora mais nova bufou alto:
— Isto é sempre a mesma coisa! Vêm para aqui sem dinheiro e depois atrasam toda a gente!
Olhei para trás, envergonhada. Tentei explicar:
— Peço desculpa… Deve ter sido um engano… Eu moro aqui perto, posso ir buscar…
A funcionária olhou-me com pena misturada com impaciência:
— Não podemos guardar as compras por muito tempo, sabe? E já passou do limite para promoções…
Senti-me pequena. Tão pequena como quando era criança e a minha mãe ralhava comigo por perder as chaves de casa. Mas agora não havia mãe para me acudir. Só estranhos e olhares de julgamento.
— Dona Amélia? — ouvi uma voz familiar. Era o senhor António, vizinho do terceiro andar, que por acaso estava na fila ao lado. Aproximou-se, preocupado:
— Está tudo bem?
Tentei sorrir:
— Esqueci-me do dinheiro… Que cabeça a minha.
Ele olhou para mim com ternura e ofereceu-se para pagar as compras. Recusei, orgulhosa. Não queria ser um peso para ninguém.
Foi então que comecei a sentir uma tontura estranha. O chão parecia afastar-se dos meus pés. Ouvia as vozes cada vez mais distantes:
— Dona Amélia? Dona Amélia! — chamava alguém.
Acordei sentada numa cadeira, rodeada por duas funcionárias e pelo gerente do supermercado. Uma ambulância estava estacionada à porta, as luzes azuis refletidas nas vitrinas. Um polícia falava com o gerente:
— Dizem que tentou sair sem pagar…
Fiquei em choque.
— Não! Eu nunca faria isso! Só me esqueci do dinheiro…
As lágrimas começaram a cair-me pelo rosto. Senti-me humilhada, vulnerável, como se toda a minha dignidade tivesse sido arrancada ali mesmo, entre as prateleiras de detergentes e bolachas.
O polícia olhou-me nos olhos, avaliando se dizia a verdade ou não. O senhor António interveio:
— Eu conheço a Dona Amélia há anos! É incapaz de tal coisa!
O gerente hesitou:
— Compreendemos, mas temos regras…
A ambulância insistiu para me levar ao hospital para observação. Recusei. Queria apenas ir para casa, fechar a porta e esquecer aquele dia.
No caminho para casa, o senhor António acompanhou-me em silêncio. Quando chegámos ao meu prédio, ele perguntou:
— Tem alguém que possa vir ajudá-la? Algum familiar?
Balancei a cabeça.
— O meu filho está em Londres há anos. Liga de vez em quando… A minha irmã já não sai de casa… Estou habituada a desenrascar-me sozinha.
Ele pousou a mão no meu ombro:
— Se precisar de alguma coisa, sabe onde moro.
Agradeci-lhe com um sorriso triste e entrei em casa. Sentei-me à mesa da cozinha, olhando para o saco vazio das compras que nunca chegaram a ser minhas.
A solidão pesava mais do que nunca. Lembrei-me dos tempos em que a casa estava cheia: os risos dos meus netos nas férias grandes, o cheiro do arroz doce da minha irmã nos Natais antigos, as discussões acesas com o meu marido sobre futebol e política.
Agora só restava o silêncio e o eco das vozes do supermercado.
Peguei no telefone e liguei ao meu filho. Atendeu ao fim de vários toques:
— Mãe? Está tudo bem?
Hesitei antes de responder:
— Está… Está tudo bem. Só queria ouvir-te.
Ele percebeu pela minha voz que algo não estava certo:
— Aconteceu alguma coisa?
Contei-lhe tudo, entre soluços e pausas longas. Ele prometeu vir visitar-me no próximo mês. Agradeci-lhe, mas sabia que era uma promessa feita mais por obrigação do que por vontade.
Naquela noite quase não dormi. A imagem dos olhos desconfiados do polícia perseguia-me. Senti vergonha por ter deixado que um simples esquecimento se transformasse num escândalo público.
No dia seguinte, fui à igreja do bairro. Sentei-me no último banco e rezei baixinho:
— Senhor, dai-me força para continuar sozinha neste mundo tão apressado e tão pouco atento aos velhos.
Saí da igreja com uma decisão: não voltaria a deixar que a vergonha me impedisse de pedir ajuda quando precisasse. Mas também sabia que nada voltaria a ser igual depois daquele dia.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós passamos despercebidos até ao dia em que tropeçamos? E será que alguém repara realmente quando caímos?