O Dia em Que o Meu Filho Pediu Que Eu Não Fosse ao Seu Casamento

— Mãe, por favor, não venhas ao meu casamento. Assim vai ser melhor para todos.

As palavras do Miguel ecoaram no telefone como um trovão num céu limpo. Fiquei sem ar, com o convite ainda na mão, as letras douradas a brilharem sob a luz da cozinha. O nome dele, Miguel Duarte, escrito com tanto cuidado pela minha cunhada, a irmã do meu ex-marido. E eu ali, parada, a tentar perceber como é que o meu filho, o meu menino, podia achar que a minha ausência era melhor para todos.

— Para todos? — repeti, com a voz embargada. — Até para ti, Miguel?

Do outro lado, silêncio. Ouvi apenas um suspiro, talvez de impaciência, talvez de tristeza. Não sei. Nunca sei o que ele sente desde que tudo mudou.

Não me lembro bem quando começou o afastamento. Talvez tenha sido no dia em que decidi sair de casa, depois de anos de discussões com o António. O Miguel tinha 12 anos e a irmã, a Mariana, só 8. Lembro-me de os ver sentados no sofá, olhos arregalados enquanto eu fazia as malas. O António gritava na cozinha, dizia que eu era egoísta, que estava a destruir a família. E eu só queria paz. Só queria respirar.

— Mãe, vais mesmo embora? — perguntou-me o Miguel nessa noite.

Abracei-o com força. Disse-lhe que ia ser melhor assim, que ele ia ver. Mas nunca foi. Pelo menos para ele.

O António ficou com eles durante a semana. Eu via-os aos fins-de-semana e nas férias. No início, tudo parecia suportável. Íamos ao Jardim da Estrela, fazíamos piqueniques na praia da Costa da Caparica. Mas depois vieram os novos hábitos, as novas pessoas. O António arranjou namorada — a Vera — e os miúdos começaram a falar dela como se fosse uma tia divertida. Eu sentia-me cada vez mais de fora.

— A Vera faz o melhor arroz de pato! — dizia a Mariana.

— A Vera leva-nos ao cinema — acrescentava o Miguel.

Eu sorria, fingia que não me importava. Mas importava-me. Muito.

Com o tempo, os fins-de-semana começaram a ser trocados por festas de amigos, treinos de futebol e trabalhos de casa. O Miguel cresceu depressa demais. Aos 16 anos já quase não falava comigo sobre nada importante. Quando lhe perguntava se estava tudo bem na escola, respondia com monossílabos. Quando tentava saber dos amigos dele, dizia apenas “são fixes”.

A Mariana era diferente. Sempre foi mais chegada a mim. Mas mesmo ela começou a preferir ficar em casa do pai quando havia festas ou viagens em família. Eu era sempre a segunda escolha.

O tempo passou e eu tentei refazer a minha vida. Conheci o Rui num curso de fotografia em Lisboa. Ele era gentil e paciente, mas nunca conseguiu conquistar os meus filhos. O Miguel mal lhe falava quando vinha cá jantar.

— Não preciso de outro pai — disse-me uma vez, seco.

— O Rui não quer ser teu pai, Miguel. Só quer conhecer-te.

Ele encolheu os ombros e saiu para o quarto.

Quando o Miguel entrou na universidade no Porto, vi-o cada vez menos. As chamadas eram rápidas e práticas: “Está tudo bem”, “Preciso de dinheiro para os livros”, “Vou passar o Natal com o pai este ano”.

No ano passado soube pelo Facebook que ele estava noivo da Sofia — uma rapariga simpática de Braga que conheci apenas uma vez num almoço apressado. Nunca me convidaram para jantar juntos, nunca me pediram opinião sobre nada do casamento.

E agora isto: um convite enviado pela minha ex-cunhada e um telefonema frio do meu próprio filho a pedir-me para não ir ao casamento dele.

Sentei-me à mesa da cozinha e chorei como já não chorava há anos. Senti-me sozinha como nunca antes.

No dia seguinte liguei à Mariana.

— Sabias disto? — perguntei-lhe, tentando controlar as lágrimas.

— O Miguel acha que vai haver confusão se fores — disse ela em voz baixa. — A Vera vai estar lá… O pai também não quer que vás.

— Mas eu sou mãe dele! — gritei sem querer.

— Eu sei… Mas ele está muito nervoso com tudo isto. Não quer dramas no casamento.

A Mariana ficou em silêncio do outro lado da linha. Senti que também ela estava dividida entre mim e o irmão.

Durante semanas andei perdida pela casa, sem saber o que fazer à dor que sentia. O Rui tentava animar-me:

— Vai passar… O Miguel vai perceber um dia o erro que está a cometer.

Mas eu sabia que não era assim tão simples. A culpa corroía-me por dentro: teria sido diferente se tivesse ficado? Se tivesse aguentado mais uns anos com o António? Se tivesse sido mais paciente com a Vera? Se tivesse tentado aproximar-me mais do Miguel quando ele era adolescente?

Na véspera do casamento recebi uma mensagem do Miguel:

“Mãe, espero que entendas. Não quero magoar-te, mas preciso que respeites isto.”

Respondi apenas: “Amo-te sempre”.

No dia do casamento acordei cedo e fui até à praia da Caparica sozinha. Sentei-me na areia fria e olhei para o mar revolto de outubro. Tentei lembrar-me do Miguel pequeno, das gargalhadas dele quando corria atrás das gaivotas, das mãos pequeninas agarradas às minhas.

Chorei baixinho até não ter mais lágrimas.

À tarde fui visitar a minha mãe em Almada. Ela olhou para mim com pena:

— Os filhos crescem e fazem escolhas difíceis… Mas nunca deixam de ser nossos filhos.

Ficámos as duas em silêncio a ver fotografias antigas: eu e o Miguel na Feira Popular; ele e a Mariana no jardim; todos juntos antes do divórcio estragar tudo.

À noite recebi uma fotografia no grupo da família: o Miguel e a Sofia sorridentes à porta da igreja; o António ao lado deles; a Vera atrás com um vestido azul-escuro; a Mariana entre eles todos, meio deslocada.

Senti uma pontada no peito tão forte que quase não consegui respirar.

Dias depois tentei ligar ao Miguel mas ele não atendeu. Enviei-lhe uma mensagem:

“Quando quiseres falar comigo, estarei aqui.” Nunca respondeu.

Passaram-se meses assim: eu à espera de um sinal dele; ele calado no seu novo mundo onde eu parecia não caber.

A Mariana vinha visitar-me de vez em quando e tentava animar-me:

— O Miguel precisa de tempo… Ele sente-se culpado por te magoar mas acha mesmo que fez o melhor para evitar problemas com o pai e com a Vera.

— E tu? Achas isso justo?

Ela encolheu os ombros:

— Não sei… Só queria que estivéssemos todos juntos outra vez.

No Natal desse ano decidi escrever uma carta ao Miguel:

“Meu filho,
Sei que achas que fizeste o melhor ao pedir-me para não ir ao teu casamento. Sei também que cresceste entre dois mundos diferentes e nunca foi fácil para ti escolher um lado sem magoar alguém. Perdoa-me por todas as vezes em que falhei contigo — por não ter sido forte o suficiente para te proteger das nossas guerras de adultos; por não ter conseguido ser sempre a mãe presente que merecias; por ter deixado que outras pessoas ocupassem o meu lugar no teu coração.
Amo-te desde sempre e para sempre. Quando quiseres voltar, estarei aqui — como sempre estive, mesmo quando não me viste.
Com amor,
Mãe”

Nunca tive resposta à carta. Mas escrevê-la ajudou-me a libertar parte da culpa e da dor acumuladas durante anos.

Hoje continuo à espera do dia em que o Miguel volte a procurar-me — nem que seja só para me dizer cara a cara porque é que achou melhor eu não estar presente no dia mais importante da vida dele.

Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir uma relação depois de tanto silêncio? Ou há feridas familiares que nunca chegam verdadeiramente a sarar?