O Dia em que Despedaçei a Minha Família: Um Olhar de Dor e Saudade

— Não aguento mais, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto a loiça tilintava na bancada da cozinha. O cheiro do arroz queimado misturava-se ao ar pesado de mais uma discussão. A minha mãe, Teresa, virou-se para mim com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Filha, não é assim tão simples… — murmurou, tentando conter as lágrimas.

Mas para mim era. Aos dezassete anos, tudo parecia preto no branco. O meu pai, António, estava outra vez atrasado. O jantar arrefecia e a tensão crescia. Eu já não suportava aquele ambiente. As discussões eram diárias: ora por causa do dinheiro, ora porque o meu pai chegava tarde do trabalho, ora porque a minha mãe se sentia sozinha. E eu, no meio, sentia-me a sufocar.

Lembro-me de uma noite em particular. O relógio marcava quase meia-noite quando ouvi a porta da rua bater. O meu pai entrou, cansado, com as mãos sujas de óleo — era mecânico numa oficina em Setúbal. A minha mãe levantou-se do sofá num salto.

— Achas normal chegares a esta hora? — atirou ela, voz trémula.

— Estive a trabalhar! Precisas de dinheiro ou não? — respondeu ele, já sem paciência.

Eu tapei os ouvidos no quarto, mas as palavras atravessavam as paredes finas do nosso apartamento. “Se não fosse por ti…”, “Já não te suporto…”, “Só estamos juntos por causa da Rebeca!”. O meu nome era sempre o motivo ou o pretexto. Sentia-me culpada por existir.

No liceu, invejava os colegas que falavam dos pais com carinho. A minha melhor amiga, Mariana, dizia-me:

— Não podes continuar assim, Rebeca. Tens de fazer alguma coisa.

Mas o quê? Falar com eles? Fugir de casa? Um dia, numa aula de Psicologia, a professora falou sobre famílias tóxicas e o impacto nos filhos. Senti-me exposta. Decidi agir.

Numa noite fria de janeiro, esperei que ambos estivessem em casa. Chamei-os à sala. As mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair o copo de água.

— Preciso de falar convosco — disse, tentando parecer adulta.

Eles olharam um para o outro, desconfiados.

— Eu já não aguento mais isto. Vocês só discutem. Eu não sou feliz aqui. Se é por minha causa que continuam juntos… parem. Eu prefiro mil vezes ter pais separados do que viver neste inferno!

O silêncio foi ensurdecedor. A minha mãe chorou baixinho. O meu pai olhou para o chão. Senti-me poderosa e ao mesmo tempo miserável.

Nos dias seguintes, pairava uma tensão diferente em casa. O meu pai começou a dormir no sofá. A minha mãe evitava-o. Eu sentia-me culpada mas também aliviada — finalmente tinha dito o que me sufocava há anos.

Duas semanas depois, o meu pai fez as malas. Não houve gritos nem despedidas dramáticas. Apenas um beijo frio na testa e um “porta-te bem” sussurrado à pressa.

A casa ficou vazia. A minha mãe chorava todas as noites no quarto ao lado. Eu fingia dormir mas ouvia tudo. Comecei a ter insónias e ataques de ansiedade. No liceu, Mariana tentava animar-me:

— Fizeste o que era melhor para ti…

Mas será que fiz mesmo?

Os meses passaram e a rotina mudou. O meu pai arranjou um quarto num bairro vizinho e via-o apenas aos fins-de-semana. As conversas eram forçadas; ele tentava sorrir mas os olhos denunciavam tristeza.

A minha mãe mergulhou no trabalho — costureira num ateliê — e tornou-se mais distante. Às vezes culpava-me indiretamente:

— Se não tivesses dito aquilo… talvez ainda estivéssemos juntos.

Ou então:

— Tu nunca vais perceber o que é perder alguém depois de vinte anos juntos.

Eu queria gritar que só tinha tentado salvar-nos a todos. Mas calei-me.

No verão seguinte, conheci o Miguel numa festa da praia da Figueirinha. Ele era diferente: ouvia-me sem julgar e fazia-me rir como há muito ninguém fazia. Começámos a namorar e ele tornou-se o meu refúgio.

Mas as feridas da família não sararam. No Natal desse ano, tentei juntar os meus pais para a consoada. Foi um desastre: discussões veladas, silêncios constrangedores, lágrimas contidas.

— Isto nunca vai voltar ao normal — sussurrou a minha mãe quando lavávamos a loiça.

O meu pai saiu antes da sobremesa.

Os anos passaram e fui para a universidade em Lisboa. A distância ajudou-me a respirar mas nunca apaguei o peso do passado. Sempre que via casais felizes na rua sentia uma pontada de inveja e culpa.

Hoje tenho vinte e dois anos e continuo a perguntar-me: teria sido diferente se tivesse ficado calada? Será que precipitei um fim inevitável? Ou será que salvei os meus pais de uma vida infeliz?

Às vezes sonho com uma família unida à mesa do jantar, risos em vez de gritos, abraços em vez de portas batidas. Mas acordo sempre com a mesma dúvida: será que alguma vez existiu essa família ou foi só um desejo ingénuo de uma adolescente desesperada?

E vocês? Já sentiram que uma decisão vossa mudou tudo para sempre? Será que é possível perdoarmo-nos pelo passado?