O Dia em que a Minha Sogra Decidiu Apagar Quem Eu Era

— Já chega disto, Mariana! — ouvi a voz da minha sogra ecoar pela casa, carregada de uma autoridade que nunca lhe dei. — Está na hora de guardares as coisas de criança.

O meu coração disparou. Corri para a sala, onde ela estava de pé, junto à minha estante de colecionáveis. As miniaturas de comboios, os postais antigos de Lisboa, as bonecas de porcelana que herdei da minha avó — tudo espalhado pelo chão, algumas peças já partidas. Senti um nó na garganta, mas não consegui falar. O meu marido, Rui, estava parado ao lado dela, com um ar de quem preferia estar em qualquer outro lugar.

— Mãe, por favor… — tentei começar, mas ela interrompeu-me com um gesto brusco.

— Mariana, já tens trinta e dois anos. Não achas que está na altura de crescer? Isto só ocupa espaço e atrapalha a casa. O Rui precisa do escritório para trabalhar, e tu… bem, tu devias pensar em coisas mais importantes.

A raiva misturou-se com a humilhação. Aquela coleção era o meu refúgio desde criança. Cada peça tinha uma história: o comboio azul que o meu pai me deu antes de morrer; o postal do Porto que comprei na primeira viagem sozinha; a boneca que a minha avó me entregou no hospital, pouco antes de partir. Não eram só objetos — eram pedaços da minha vida.

— Isto não é lixo! — gritei, finalmente. — São as minhas memórias!

A minha sogra olhou-me como se eu fosse uma criança birrenta. — Memórias não pagam contas nem ajudam a construir uma família. Tens de aprender a deixar o passado para trás.

O Rui não disse nada. Limitou-se a olhar para o chão, evitando o meu olhar suplicante. Senti-me sozinha naquela sala cheia de destroços.

Nos dias seguintes, tentei recuperar o que pude. Algumas peças estavam partidas sem remédio; outras tinham desaparecido misteriosamente. Perguntei ao Rui se sabia onde estavam, mas ele encolheu os ombros.

— A minha mãe só quer ajudar — disse ele uma noite, enquanto eu chorava baixinho na cama. — Ela acha que te faz bem desapegares-te dessas coisas.

— E tu? O que achas? — perguntei-lhe, esperando ouvir algum apoio.

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que tinha adormecido.

A relação com a minha sogra nunca foi fácil, mas até então conseguíamos manter uma cordialidade superficial. Ela sempre foi daquelas mulheres que gostam de controlar tudo: desde o que se come ao domingo até à cor das cortinas da sala. Quando nos mudámos para o apartamento novo — comprado com muito esforço e um empréstimo do banco — ela começou a aparecer cada vez mais vezes, sempre com opiniões e conselhos não solicitados.

No início achei que era preocupação. Agora percebia que era invasão.

O pior foi quando descobri que ela tinha dado algumas das minhas peças à empregada dela. Vi uma das minhas bonecas na prateleira da cozinha dela quando fui lá buscar um bolo para o aniversário do Rui.

— Ah, foi a sua sogra que me deu — disse ela, sorridente. — Disse que já não precisava destas coisas.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Confrontei o Rui nessa noite.

— A tua mãe não tinha o direito! Aquilo era meu!

Ele suspirou, cansado. — Mariana, são só coisas…

— Não são só coisas! São parte de mim! — gritei-lhe, incapaz de conter as lágrimas.

A partir desse dia, comecei a evitar a minha sogra. As visitas dela tornaram-se cada vez mais tensas. Ela percebia o meu desconforto e fazia questão de comentar:

— Estás muito sensível ultimamente. Devias pensar em ter filhos, Mariana. Isso sim é importante.

Como se ter filhos fosse um remédio para tudo o resto.

A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem. Um dia ligou-me e ouviu-me chorar ao telefone.

— Filha, não deixes que te apaguem — disse ela. — Luta pelo que é teu.

Mas lutar contra a minha sogra era como lutar contra uma tempestade: quanto mais resistia, mais forte ela parecia ficar.

O Rui começou a passar mais tempo fora de casa. Dizia que era trabalho, mas eu sabia que era para evitar os conflitos. Eu sentia-me cada vez mais sozinha naquele apartamento onde já não reconhecia as minhas coisas nem a mim própria.

Comecei a ter insónias. Passava as noites a pensar em tudo o que tinha perdido — não só os objetos, mas também a sensação de pertença e segurança. Perguntava-me se estava errada em dar tanta importância àquelas peças. Talvez fosse mesmo tempo de crescer e deixar para trás as “coisas de criança”.

Mas depois lembrava-me do sorriso do meu pai quando me ofereceu aquele comboio azul; do cheiro da casa da minha avó quando brincávamos juntas; das tardes passadas a organizar os postais por ordem alfabética. Não eram só memórias — eram raízes.

Um dia tomei uma decisão. Fui à loja de antiguidades do bairro e comprei uma nova peça para começar outra coleção: um pequeno globo terrestre em porcelana. Quando cheguei a casa, coloquei-o na prateleira vazia da sala e sentei-me em frente dele durante horas.

O Rui chegou tarde nessa noite e olhou para o globo com desdém.

— Outra vez isto?

Levantei-me devagar e olhei-o nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Sim, outra vez isto. Porque isto sou eu.

Ele abanou a cabeça e foi para o quarto sem dizer mais nada.

Na manhã seguinte, deixei-lhe uma carta em cima da mesa:

“Rui,
Se não consegues aceitar quem eu sou — com as minhas memórias, as minhas coleções e tudo o resto — então talvez não devêssemos continuar juntos. Não posso viver numa casa onde tenho de pedir licença para ser eu própria.”

Saí sem olhar para trás.

Hoje vivo num pequeno apartamento em Almada, rodeada das minhas coisas — antigas e novas — e sinto-me finalmente em paz. A minha mãe visita-me todas as semanas e ajudou-me a recuperar algumas peças perdidas através de contactos com feirantes e colecionadores.

Às vezes ainda penso no Rui e na sua mãe. Pergunto-me se algum dia perceberão o mal que fizeram ao tentar apagar quem eu era só porque não encaixava no molde deles.

E vocês? Já sentiram que alguém tentou apagar uma parte importante da vossa identidade? Até onde iriam para proteger aquilo que vos faz ser quem são?