O Dia em Que a Fortuna Mudou Tudo: Entre o Amor, a Família e a Escolha Difícil
— Mãe, não podes fazer isso! — gritou a minha filha Mariana, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu segurava o envelope com os papéis da doação. O eco da sua voz ainda ressoa na minha cabeça, mesmo agora, anos depois daquele dia em que tudo mudou.
Naquela noite fria de janeiro de 2020, o telefone tocou às 22h13. O número era estranho, e hesitei antes de atender. Do outro lado, uma voz formal: “Boa noite, fala da Santa Casa da Misericórdia. A senhora Adélia Rodrigues?”
O meu coração disparou. O meu marido, Bruno, olhou para mim com uma expressão de quem já adivinhava algo fora do comum. “Sim, sou eu”, respondi, tentando manter a voz firme.
“Parabéns. A senhora e o seu marido são os vencedores do Euromilhões desta semana. Cento e trinta milhões de euros.”
Por um instante, o mundo parou. Senti o sangue fugir-me do rosto. Bruno caiu de joelhos no tapete da sala, as mãos na cabeça. Eu só conseguia pensar: “Isto não pode ser verdade.”
A notícia espalhou-se rápido pela aldeia de São Martinho do Porto. Os vizinhos começaram a olhar para nós com outros olhos, alguns com inveja, outros com esperança. Os meus pais ligaram-me logo de manhã: “Filha, não te esqueças de quem sempre esteve ao teu lado.”
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Bruno queria comprar uma casa enorme em Cascais, carros de luxo, viagens pelo mundo. Eu sentia-me sufocada por tanto dinheiro. Sempre vivi com pouco, sempre trabalhei duro como enfermeira no hospital de Leiria. O dinheiro parecia sujo nas minhas mãos.
Foi então que comecei a pensar em tudo o que poderíamos fazer pelos outros. Lembrei-me das noites em que faltavam camas no hospital, das crianças sem livros na escola da vila, dos idosos sozinhos no lar.
— Bruno, e se ajudássemos quem precisa? — perguntei-lhe numa noite em que o silêncio pesava entre nós.
Ele olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.
— Ajudar? Adélia, temos dois filhos! A Mariana quer estudar Medicina em Lisboa, o Tiago sonha abrir um restaurante. Não lhes vais negar o futuro!
— Não lhes vou negar nada — respondi — mas também não lhes vou dar tudo de mão beijada. Quero que eles saibam o valor do trabalho, que aprendam a lutar pelos sonhos.
A discussão tornou-se rotina. Mariana chorava à mesa do jantar: “Mãe, as minhas amigas já sabem! Dizem que agora sou rica! Não podes dar-me só uma parte?” Tiago fechava-se no quarto, batendo a porta: “Nunca tiveste nada e agora queres dar tudo aos outros!”
Os meus pais pressionavam-me: “Filha, pensa nos teus filhos! Não sejas tola!” Até a minha irmã mais nova me ligou a pedir um empréstimo para comprar casa.
No meio deste caos, comecei a visitar associações locais. Falei com a Dona Rosa do Centro Social: “Com esse dinheiro podíamos abrir uma creche nova.” Fui ao hospital e perguntei ao diretor: “Quanto custa renovar a ala pediátrica?”
Bruno afastava-se cada vez mais. Dormíamos em quartos separados. Ele passava horas a olhar para catálogos de carros e casas online. Eu sentia-me sozinha na minha própria casa.
Uma noite, sentei-me na varanda com um copo de vinho e olhei para as estrelas. Perguntei-me se estava a ser egoísta ou corajosa. Lembrei-me da minha infância pobre em Trás-os-Montes, dos dias em que partilhávamos uma sardinha por três irmãos.
No dia em que assinei os papéis para doar metade da fortuna à Santa Casa e a várias instituições locais, Mariana não me falou durante semanas. Tiago saiu de casa e foi viver com amigos em Lisboa. Bruno ameaçou pedir o divórcio.
Mas algo mudou dentro de mim. Senti-me livre pela primeira vez em meses. Comecei a trabalhar como voluntária na creche nova que ajudámos a construir. Vi crianças sorrirem com livros novos nas mãos. Recebi cartas de agradecimento de famílias que nunca conhecerei.
O tempo passou e as feridas começaram a sarar devagarinho. Mariana acabou por entrar em Medicina — com bolsa de estudo e muito esforço próprio. Tiago abriu um pequeno café em Lisboa com um empréstimo modesto que lhe dei — ele próprio fez questão de pagar cada cêntimo.
Bruno e eu fizemos terapia de casal. Ele nunca me perdoou totalmente por não ter comprado aquela casa em Cascais, mas aprendeu a admirar a minha coragem.
Hoje olho para trás e vejo uma família marcada pelo dinheiro — mas também pela escolha difícil entre o amor egoísta e o amor generoso.
Às vezes pergunto-me: teria sido mais fácil dar-lhes tudo? Ou foi esta luta que nos tornou verdadeiramente ricos? E vocês, o que fariam se tivessem nas mãos o poder de mudar tantas vidas?