O Dia em que a Família se Desfez: O Testamento de Dona Isabel
— Não é justo, mãe! — O grito do Bruno ecoou pela sala, cortando o silêncio pesado que se instalara depois da leitura do testamento. Eu estava sentada ao lado dele, a mão dele a tremer na minha, e sentia o coração apertado. Dona Isabel, com o seu cabelo grisalho impecavelmente preso num coque, mantinha-se firme na cabeceira da mesa, os olhos frios e decididos.
— Bruno, já falámos sobre isto — respondeu ela, a voz baixa mas cortante. — O João precisa mais do apartamento. Tu tens a tua vida feita.
Olhei para o João, sentado do outro lado da mesa, os olhos baixos, quase envergonhado. A esposa dele, Mariana, tentava esconder um sorriso satisfeito. Os meus sogros sempre tiveram uma predileção por ele, mas nunca pensei que chegasse a este ponto.
O apartamento no centro de Lisboa era o sonho de qualquer um: três quartos, varanda com vista para o Tejo, perto de tudo. O Bruno e eu sempre imaginámos criar ali os nossos filhos. Em vez disso, ficámos com a pequena casa de praia em Sesimbra — bonita, sim, mas velha e a precisar de obras que não podíamos pagar.
— E eu? — perguntei, sem conseguir conter-me. — Fico com quê?
Dona Isabel olhou-me como quem olha para uma pedra no sapato.
— Tu és só a nora. O que é teu é do Bruno.
Senti-me humilhada. Não era só pelo dinheiro ou pela casa; era pela forma como sempre fui tratada como uma estranha naquela família. O Bruno apertou-me a mão com mais força.
— Mãe, não é só uma questão de precisar ou não. O João sempre foi protegido. Sempre teve tudo de mão beijada. Eu trabalhei desde os 16 anos! — A voz dele falhava entre a raiva e o desespero.
O silêncio caiu de novo. Os netos brincavam na sala ao lado, alheios à tempestade que se abatia sobre nós. Lembrei-me da primeira vez que fui apresentada à família: Dona Isabel olhou-me de cima a baixo e perguntou se eu sabia cozinhar bacalhau à Brás. Nunca me senti verdadeiramente aceite.
O pai do Bruno morreu cedo; ele teve de crescer depressa. Trabalhou para pagar a universidade e ajudou o irmão mais novo nos estudos. Quando casámos, comprámos tudo em segunda mão e fizemos das tripas coração para dar uma vida digna aos nossos filhos. O João? Sempre teve carro novo, viagens pagas e agora… o apartamento.
— Isto é uma vergonha — murmurou a minha cunhada Sofia, irmã do Bruno e do João. Ela também não ficou com nada além de umas peças de ouro antigas da avó. — Parece que só os rapazes contam nesta família.
Dona Isabel levantou-se devagar.
— Não quero discussões. O testamento está feito. Cada um fica com o que merece.
O João finalmente falou:
— Mãe… eu nem sei se quero o apartamento assim…
— Cala-te, João! — interrompeu Mariana, lançando-me um olhar vitorioso.
O Bruno levantou-se de rompante e saiu da sala. Fui atrás dele, deixando para trás os olhares acusadores e as conversas sussurradas. Encontrámo-lo no jardim, sentado num banco de pedra, a cabeça entre as mãos.
— Não aguento mais isto — disse ele, a voz embargada. — Sempre fui o filho invisível.
Sentei-me ao lado dele e abracei-o.
— Não és invisível para mim nem para os nossos filhos. Mas percebo a tua dor…
Ele olhou-me nos olhos.
— E se eu recusasse a herança? Se dissesse à minha mãe que não quero nada?
Fiquei em silêncio. Era uma decisão difícil. A casa de Sesimbra podia ser um fardo ou uma oportunidade. Mas era mais do que isso: era sobre dignidade, justiça e amor-próprio.
Voltámos para dentro quando já era noite. A família dispersava-se em pequenos grupos: Sofia chorava baixinho ao telefone; João discutia com Mariana; Dona Isabel recolhia os papéis do testamento como quem arruma pratos partidos.
No carro, a caminho de casa, os nossos filhos dormiam no banco de trás. O Bruno olhava pela janela, perdido nos seus pensamentos.
— Achas que algum dia vou ser suficiente para ela? — perguntou-me.
Apertei-lhe a mão.
— És suficiente para mim. E isso devia bastar.
Mas será que basta mesmo? Será que algum dia conseguimos curar as feridas abertas pelas escolhas dos nossos pais? Ou ficamos condenados a repetir os mesmos erros? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar…