O Destino Rasgado: O Noivado Inesperado da Ana

— Não pode ser verdade, Ana! — gritei, sentindo a garganta arder de tanto segurar as lágrimas. O bolo de aniversário ainda estava intacto na mesa, as velas por acender, mas o ambiente já cheirava a pólvora. A minha mãe olhava para Ana como se não a reconhecesse. O meu pai, de braços cruzados, fitava o chão, incapaz de dizer uma palavra.

Ana, com aquele sorriso nervoso que só ela sabia fazer, olhou-me nos olhos. — É verdade, Mariana. Eu e o Tiago vamos casar. — A voz dela tremia, mas havia uma determinação ali que me assustava.

O silêncio caiu sobre nós como um cobertor pesado. O meu irmão mais novo, o João, olhava de um para o outro sem perceber metade do que se passava. A minha mãe foi a primeira a reagir:

— Casar? Com dezoito anos? Ana, tu nem sabes o que é a vida! — A voz dela era cortante, mas eu sabia que por trás daquela dureza havia medo.

Ana não recuou. — Sei mais do que pensam. E amo o Tiago. Não vou esperar mais.

O meu pai levantou-se devagar. — E os estudos? E os teus sonhos? Vais deitar tudo fora por um rapaz?

— Não estou a deitar nada fora! — Ana respondeu, agora com lágrimas nos olhos. — Só quero ser feliz.

Fiquei ali parada, sem saber se devia abraçá-la ou gritar-lhe mais alto. Sempre fomos próximas, mas naquele momento senti que havia um abismo entre nós. O Tiago era nosso vizinho desde pequenos, sempre andou connosco na escola, mas nunca imaginei que isto pudesse acontecer.

A notícia espalhou-se pela aldeia em menos de um dia. As vizinhas cochichavam à porta da mercearia, os amigos do Tiago faziam piadas parvas no café do senhor Américo. A minha avó ligou de Lisboa só para perguntar se era verdade ou se era mais uma invenção das más línguas.

Na escola, os olhares seguiam-nos pelos corredores. Uns invejosos, outros curiosos. Eu sentia-me sufocada por perguntas e comentários. “A tua irmã vai casar? Que loucura!” “E tu, Mariana, não tens medo de ficar para tia?”

Mas o pior era em casa. As discussões tornaram-se diárias. A minha mãe chorava baixinho à noite, o meu pai começou a chegar cada vez mais tarde do trabalho. O João fechava-se no quarto com os auscultadores nos ouvidos para não ouvir nada.

Uma noite, ouvi Ana a chorar no quarto ao lado. Bati à porta devagar.

— Posso entrar?

Ela não respondeu, mas entrei na mesma. Estava sentada na cama, com as pernas encolhidas e os olhos vermelhos.

— Tens a certeza disto? — perguntei baixinho.

Ela olhou para mim como se procurasse uma resposta dentro de mim.

— Tenho medo, Mariana. Mas também tenho medo de ficar aqui presa para sempre. Sabes como é a mãe… nunca vai deixar-nos sair daqui.

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Lembrei-me de quando éramos pequenas e fazíamos planos para fugir juntas para Lisboa ou para o Porto, estudar, viajar pelo mundo. Agora parecia tudo tão distante.

— E o Tiago? Ele quer mesmo isto?

Ela hesitou antes de responder:

— Ele diz que sim… mas às vezes sinto que está mais assustado do que eu.

Ficámos em silêncio durante um tempo. Oiço os passos do meu pai no corredor e o ranger da porta da cozinha. Senti um nó no estômago.

No dia seguinte, a minha mãe chamou-me à cozinha enquanto preparava o jantar.

— Mariana, tu és a mais sensata das duas. Fala com a tua irmã. Convence-a a desistir desta loucura.

Olhei para ela e vi nos olhos dela o desespero de quem sente a vida fugir-lhe das mãos.

— Mãe, talvez devêssemos ouvir o que ela quer…

Ela largou a faca na bancada e virou-se para mim:

— O que ela quer? Ela não sabe o que quer! Vai estragar a vida dela e depois vai culpar-nos!

Senti raiva e pena ao mesmo tempo. Queria proteger a Ana, mas também compreendia o medo da minha mãe. Afinal, ela própria casou cedo demais e sempre disse que se arrependeu de não ter vivido mais antes de se prender.

Os dias passaram e a tensão aumentava. O Tiago vinha cá a casa todos os domingos para o almoço, mas agora sentava-se calado, mexendo no prato sem comer quase nada. O meu pai fazia perguntas secas sobre trabalho e futuro; o Tiago respondia com frases curtas, sempre a olhar para as mãos.

Uma tarde, ouvi uma discussão acesa no quintal. Corri até lá e vi o meu pai aos gritos com o Tiago.

— Achas que és homem suficiente para cuidar da minha filha? Achas mesmo?

O Tiago tentou responder, mas gaguejou:

— Eu… eu amo a Ana… vou fazer tudo por ela…

O meu pai abanou a cabeça e entrou em casa sem dizer mais nada. O Tiago ficou ali parado, com os olhos cheios de lágrimas. Fui ter com ele.

— Não tens de provar nada ao meu pai — disse-lhe baixinho.

Ele olhou para mim com um sorriso triste.

— Tenho sim… tenho de provar a toda a gente… até a mim próprio.

Naquela noite sonhei com a Ana vestida de branco, sozinha numa igreja vazia. Acordei sobressaltada e fui até à janela ver as luzes da aldeia ao longe. Senti-me pequena e impotente diante do mundo dos adultos que nos empurrava para decisões maiores do que nós.

As semanas passaram e chegou o dia do noivado oficial. A casa encheu-se de família e vizinhos; havia comida por todo o lado e risos nervosos no ar. A Ana parecia feliz por fora, mas eu via-lhe nos olhos o medo de quem está prestes a saltar sem saber se há rede em baixo.

No meio da festa ouvi a minha tia Lurdes comentar com outra tia:

— Isto é tudo porque ela quer fugir daqui…

A frase ficou-me na cabeça como uma pedra no sapato.

Quando todos já tinham ido embora, sentei-me com a Ana na varanda.

— Se pudesses escolher outra vida… escolhias?

Ela ficou calada durante muito tempo antes de responder:

— Não sei… talvez… mas agora já é tarde demais.

Olhei para ela e percebi que às vezes fazemos escolhas não porque queremos realmente aquilo, mas porque temos medo das alternativas.

Naquela noite escrevi no meu diário: “Será que algum dia vamos conseguir ser felizes sem magoar quem amamos?”

Hoje olho para trás e vejo como tudo mudou depois daquele dia. A Ana casou mesmo com o Tiago; mudaram-se para um apartamento pequeno na cidade vizinha. A minha mãe ainda chora quando fala dela; o meu pai finge que está tudo bem mas nunca mais foi o mesmo.

Eu fiquei cá, presa entre o desejo de partir e o medo de deixar tudo para trás. Às vezes pergunto-me: será que fizemos as escolhas certas? Ou será que só seguimos o caminho mais fácil por medo do desconhecido?

E vocês? Já sentiram que tiveram de escolher entre a vossa felicidade e a dos outros? Até onde iriam para proteger quem amam?