O Destino de Inês: Entre Carris e Segredos

— Não podes continuar a fugir, Inês! — gritou a minha mãe ao telefone, a voz dela ecoando pelo átrio frio da estação de Santa Apolónia. O comboio para o Porto estava atrasado, e eu, com as mãos a tremer, apertava o telemóvel contra a orelha como se pudesse afastar as palavras dela.

— Não estou a fugir, mãe. Só preciso de tempo para pensar — respondi, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. O cheiro a café e ferro velho misturava-se com o perfume barato de alguém ao meu lado. Olhei em volta, procurando um rosto conhecido, mas só vi estranhos apressados, cada um com os seus próprios dramas.

A verdade é que eu estava a fugir. Fugir do meu pai, que nunca me perdoou por não seguir as pegadas dele na advocacia. Fugir do meu irmão mais novo, o Pedro, que me olhava sempre com aquela mistura de admiração e ressentimento. Fugir de mim própria, talvez.

O comboio finalmente chegou, rangendo como se também ele estivesse cansado da rotina. Entrei no vagão quase vazio e sentei-me junto à janela. O vidro embaciado refletia uma versão distorcida de mim: olhos vermelhos, cabelo desalinhado, um casaco velho que já tinha visto melhores dias.

O telemóvel vibrou outra vez. Era uma mensagem do Pedro: “Por favor, volta para casa. O pai está pior.”

Fechei os olhos. O meu pai estava doente há meses, mas eu não conseguia lidar com a ideia de o perder — ou pior, de nunca termos feito as pazes. A última conversa que tivemos foi um desastre:

— Vais desperdiçar a tua vida com esses livros de arte? — atirou ele, com aquele tom seco e cortante.

— Não é desperdício se me faz feliz — respondi, mas a minha voz soou fraca até aos meus próprios ouvidos.

O comboio começou a andar. As casas desfilaram pela janela como memórias: rápidas, fugazes, impossíveis de agarrar. Lembrei-me da infância em Coimbra, das tardes passadas no jardim com o Pedro, das discussões dos meus pais que eu fingia não ouvir.

Uma senhora idosa sentou-se à minha frente. Trazia um lenço colorido na cabeça e um saco de compras ao colo. Sorriu-me.

— Vai visitar família? — perguntou ela, com aquele sotaque do Norte que me fez sorrir sem querer.

— Não sei bem — respondi, sincera. — Talvez esteja só a fugir.

Ela riu-se baixinho.

— Às vezes é preciso fugir para percebermos onde queremos ficar.

As palavras dela ficaram comigo enquanto o comboio atravessava campos verdes e aldeias adormecidas. O telemóvel tocou outra vez. Desta vez era o meu pai. Hesitei antes de atender.

— Inês? — A voz dele estava mais fraca do que me lembrava.

— Estou aqui, pai.

— Não quero discutir mais contigo. Só queria dizer-te… desculpa. Por tudo.

O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Senti um nó na garganta.

— Eu também te peço desculpa — sussurrei. — Por não ser aquilo que esperavas.

Ele tossiu do outro lado da linha.

— Só queria que fosses feliz. Mesmo que não perceba como.

Chorei baixinho enquanto desligava. A senhora à minha frente fingiu não reparar, mas ofereceu-me um lenço de papel.

Quando cheguei ao Porto, o céu estava cinzento e ameaçava chover. Saí da estação sem saber para onde ir. O telemóvel tocou outra vez: era o Pedro.

— Onde estás? O pai está no hospital. Ele perguntou por ti.

Corri pelas ruas molhadas até ao hospital de São João. O cheiro a desinfetante e medo era quase insuportável. Encontrei o Pedro na sala de espera, os olhos dele tão vermelhos quanto os meus.

— Ele está à tua espera — disse ele, sem me olhar nos olhos.

Entrei no quarto devagarinho. O meu pai parecia mais pequeno na cama branca, rodeado de máquinas e tubos. Sorriu-me com esforço.

— Vieste mesmo…

Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão.

— Desculpa ter demorado tanto — disse-lhe.

Ele apertou-me os dedos com uma força surpreendente.

— Nunca é tarde para recomeçar, filha.

Ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Senti que finalmente podia respirar outra vez.

Depois do funeral — porque sim, ele partiu naquela semana — voltei para Lisboa com o Pedro. A casa parecia vazia sem os gritos do meu pai ou as discussões à mesa do jantar. A minha mãe tentava manter-se ocupada, mas eu via-lhe nos olhos a tristeza profunda de quem perdeu o amor da vida dela, mesmo depois de tantos anos de zangas e reconciliações.

Uma noite, sentei-me com ela na varanda enquanto chovia lá fora.

— Achas que fizemos tudo o que podíamos? — perguntei-lhe.

Ela olhou para mim com ternura e tristeza misturadas.

— Nunca fazemos tudo, Inês. Mas fizemos o melhor que sabíamos.

Comecei a dar aulas de História da Arte numa escola secundária em Lisboa. No início foi difícil — os alunos desinteressados, os salários baixos, as reuniões intermináveis — mas aos poucos fui encontrando sentido naquele caos quotidiano. O Pedro acabou por se mudar para o Porto para estudar medicina; falamos todas as semanas por videochamada e sinto que finalmente somos irmãos de verdade, sem invejas ou mágoas antigas entre nós.

Às vezes ainda sonho com aquela manhã na estação: o cheiro do café, o frio nos ossos, a voz da minha mãe ao telefone. Penso em tudo o que perdi e em tudo o que ganhei desde então.

Será que algum dia deixamos realmente de fugir? Ou será que aprendemos apenas a escolher melhor os nossos destinos?