O Despertar Tardio de um Pai: Entre a Culpa e a Redenção

— Não me deixes, Ana! — gritei, mas já era tarde demais. O som dos pneus a chiar na estrada molhada ainda ecoa na minha cabeça todas as noites. O telefone tocou às três da manhã, e o mundo desabou. A minha filha, Ana, tinha partido para sempre. E eu, Samuel, fiquei sozinho com uma neta que mal conhecia.

A minha relação com a Ana nunca foi fácil. Fui um pai ausente, daqueles que arranjam sempre desculpas: o trabalho na construção civil, as horas extra para pagar as contas, o cansaço. A verdade é que nunca soube ser pai. Quando a Ana engravidou cedo demais — tinha só dezassete anos —, discutimos como nunca antes. “Não vais conseguir!”, atirei-lhe uma vez, num acesso de raiva. Ela respondeu-me com um olhar magoado que nunca esqueci: “Se não me vais apoiar, então não preciso de ti.” E assim foi. Afastei-me ainda mais.

Os anos passaram. A Ana criou a Beatriz sozinha, com a ajuda da minha ex-mulher, Teresa. Eu via-as apenas nos natais e aniversários, sempre de passagem, sempre com pressa. A Beatriz cresceu sem saber quem era o avô Samuel. Eu era só uma fotografia antiga na estante da sala.

Naquela noite fatídica, Ana vinha do trabalho cansada. Um carro desgovernado atravessou-se no caminho dela. O funeral foi um mar de rostos conhecidos e lágrimas contidas. A Teresa olhou-me nos olhos e disse:

— Agora és tu. A Beatriz precisa de ti.

Fiquei paralisado. Eu? Cuidar de uma criança de três anos? Não sabia por onde começar. Mas não havia alternativa. A Teresa estava doente, já não podia tomar conta da neta.

A primeira noite com a Beatriz foi um desastre. Ela chorava baixinho na cama improvisada no meu quarto pequeno em Almada. Sentei-me ao lado dela, sem saber o que dizer ou fazer. Tentei tocar-lhe no cabelo, mas ela afastou-se.

— Quero a mamã — murmurou.

Senti um nó na garganta. Como podia explicar-lhe que a mãe não voltava? Que agora só tinha a mim?

Os dias seguintes foram um turbilhão de rotinas novas: levar a Beatriz ao infantário, preparar refeições (quase sempre massa com atum), aprender a fazer tranças no cabelo dela (um desastre total), lidar com birras e silêncios. No supermercado, ela agarrava-se ao meu casaco e olhava-me desconfiada quando eu tentava sorrir-lhe.

Uma tarde, ao buscá-la ao infantário, ouvi as outras mães comentarem:

— Coitadinha da menina… O avô nem sabe pegar nela.

Senti vergonha. Vergonha por não ter estado presente antes, por não saber ser o homem que ela precisava agora.

As noites eram as piores. Depois de adormecer, sentava-me à mesa da cozinha e olhava para as fotografias da Ana em criança. Lembrava-me das vezes em que prometi ser melhor pai e falhei sempre. A culpa era um peso insuportável.

Certa manhã, Beatriz acordou com febre alta. Entrei em pânico. Liguei à Teresa:

— O que faço? Ela está tão quente…

— Samuel, leva-a ao hospital! — gritou ela do outro lado.

No hospital Garcia de Orta, esperei horas com Beatriz ao colo. Ela adormeceu encostada ao meu peito pela primeira vez. Senti uma ternura estranha e dolorosa — como se aquele pequeno gesto fosse uma dádiva e uma acusação ao mesmo tempo.

Quando voltámos para casa, sentei-me na cama dela e contei-lhe uma história da Ana em pequena:

— Sabias que a tua mãe adorava correr nos campos atrás das borboletas? Uma vez caiu numa poça de lama e ficou toda suja…

Beatriz olhou-me com curiosidade pela primeira vez.

— A mamã ria muito? — perguntou.

— Ria sim… Ria muito — respondi, sentindo as lágrimas a quererem saltar.

Aos poucos, fomos construindo uma rotina só nossa. Aos domingos íamos ao parque da cidade; ela corria atrás dos pombos e eu tentava não parecer desajeitado entre os outros pais jovens. Comecei a conhecer os gostos dela: adorava gelado de morango e detestava sopa de nabiças; gostava de ouvir histórias antes de dormir e tinha medo do escuro.

Mas nem tudo eram progressos. Havia dias em que Beatriz chorava sem consolo, chamando pela mãe. Nessas alturas sentia-me impotente e frustrado. Uma noite, depois de mais um desses episódios, perdi a paciência:

— Beatriz! Eu estou aqui! Não sou a tua mãe mas estou a tentar!

Ela olhou para mim assustada e encolheu-se na cama. Senti-me um monstro.

No dia seguinte pedi desculpa:

— Desculpa, filha… Eu também tenho saudades da tua mãe.

Ela abraçou-me pela primeira vez.

A Teresa vinha visitar-nos aos fins-de-semana quando se sentia melhor. Um domingo trouxe um álbum de fotografias antigas da Ana.

— Mostra-lhe quem era a mãe dela — sugeriu.

Sentámo-nos os três no sofá pequeno da sala e folheámos o álbum juntos. Beatriz apontava para as fotos:

— Aqui é a mamã?

— Sim… Aqui ela tinha quase a tua idade — expliquei.

A Teresa olhou para mim com ternura e tristeza misturadas:

— Ainda vais a tempo de ser o avô que ela precisa.

Mas eu sabia que havia coisas que nunca poderia recuperar: os primeiros passos da Beatriz, as primeiras palavras, os aniversários esquecidos…

Um dia recebi uma carta do pai biológico da Beatriz — o Rui — que estava emigrado em França há anos:

“Samuel,
Soube do acidente da Ana e queria saber como está a Beatriz. Não sei se tenho direito de pedir isto depois de tanto tempo ausente… Mas gostava de falar com ela por videochamada se possível.
Rui”

Fiquei furioso. Quem era ele para aparecer agora? Mas depois percebi que não era diferente dele — também eu tinha fugido das minhas responsabilidades durante anos.

Conversei com Beatriz sobre o assunto:

— O teu pai Rui quer falar contigo pelo computador… Queres?

Ela encolheu os ombros:

— Não sei quem é ele…

Marcámos a videochamada num sábado à tarde. Rui apareceu no ecrã com ar nervoso e olhos marejados.

— Olá Beatriz…

Ela ficou calada durante toda a conversa. No fim perguntou-me:

— Ele vai vir buscar-me?

O coração apertou-se-me no peito.

— Não… Ele só queria ver como estavas.

À noite escrevi ao Rui:

“Ela está bem aqui comigo. Se quiseres manter contacto, podemos tentar aos poucos.”

Senti-me dividido entre o medo de perder a neta e o desejo de lhe dar todas as oportunidades que eu próprio neguei à Ana.

O tempo foi passando. A Beatriz começou a chamar-me “avô Sam” com naturalidade. Mas havia sempre um muro invisível entre nós — feito das ausências passadas, dos silêncios antigos.

No aniversário dela fizemos uma festa pequena em casa. Quando soprou as velas olhou para mim e disse:

— Avô Sam, achas que a mamã está a ver-nos?

Engoli em seco antes de responder:

— Acho que sim… E acho que está orgulhosa de ti.

Nessa noite sentei-me sozinho na varanda a olhar para o céu estrelado sobre Almada e perguntei-me: será possível remendar um coração partido quando se chega tão tarde? Será que o amor pode mesmo vencer os erros do passado?