O Desassossego da Minha Mãe: Entre o Amor e o Peso das Expectativas
— Outra vez sozinha, Inês? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de julgamento. — O Rui não te ajuda em nada, pois não?
A colher que eu segurava tremeu na minha mão. O cheiro do arroz queimado misturava-se ao nervosismo que me subia pelo peito. Olhei para a minha filha, Leonor, sentada no chão a brincar com as tampas das panelas. Tinha apenas dois anos, mas já percebia quando o ambiente pesava.
— O Rui está a trabalhar, mãe. Ele chega já — tentei responder com calma, mas a minha voz saiu mais fina do que queria.
Maria — nunca gostei de lhe chamar mãe na terceira pessoa, mas era assim que todos a conheciam: Maria da Papelaria, Maria dos Negócios, Maria que nunca se dava por satisfeita. Cresci a vê-la conquistar tudo sozinha, depois do divórcio com o meu pai. Sempre admirei a sua força, mas agora… agora sentia-me esmagada por ela.
— Trabalhar? — Ela bufou. — Trabalhar é o que eu fazia! Sozinha! E mesmo assim nunca deixei faltar nada em casa. Não percebo porque é que aceitas tão pouco dele e daquela família dele. Nunca te ajudam com nada!
A raiva subiu-me à garganta. Não era verdade. A família do Rui era diferente da nossa: mais reservada, menos dada a grandes gestos ou ajudas explícitas. Mas estavam lá quando era preciso. Só que para a minha mãe, tudo o que não fosse à sua maneira era insuficiente.
— Mãe, eles ajudam à maneira deles… — comecei, mas ela interrompeu-me com um gesto brusco.
— Não me venhas com desculpas! Se não fosse eu, nem tinhas conseguido acabar o curso! Nem tinhas casa! — O tom dela era cada vez mais alto. Senti o olhar da Leonor pousar em mim, os olhos grandes e assustados.
— Por favor, não grites — pedi baixinho.
Ela olhou para mim como se eu fosse uma estranha. — Não grites? Inês, tu não vês que estás a desperdiçar a tua vida? Sempre foste tão inteligente… E agora? Fechada nesta casa, com um homem que não te valoriza e uma filha para criar quase sozinha!
O silêncio caiu pesado. Senti as lágrimas ameaçarem-me os olhos, mas recusei-me a chorar à frente dela. Não lhe daria esse poder.
— Eu amo o Rui — disse apenas. — E amo a nossa família. Não é perfeita, mas é minha.
Ela suspirou fundo e saiu da cozinha sem dizer mais nada. Fiquei ali parada, com o cheiro do arroz queimado e a sensação de fracasso colada à pele.
Quando o Rui chegou, tentei sorrir-lhe. Ele percebeu logo que algo estava errado.
— A tua mãe outra vez? — perguntou em voz baixa, enquanto me abraçava.
Assenti. Senti-me pequena nos braços dele, como se quisesse desaparecer.
— Ela só quer o melhor para ti — disse ele, tentando ser diplomático.
— O melhor para mim ou o melhor para ela? — respondi amargamente.
Os dias seguintes foram um desfile de pequenas farpas e silêncios desconfortáveis. A minha mãe continuava a aparecer sem avisar, criticando tudo: a desarrumação da sala, as roupas da Leonor, até o pão que eu comprava no supermercado em vez da padaria do bairro.
Uma noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me no sofá e desabei.
— Sinto que nunca vou ser suficiente para ela — confessei ao Rui. — Tudo o que faço está errado. Se trabalho muito, sou má mãe. Se fico em casa com a Leonor, sou acomodada. Se peço ajuda à tua família, sou fraca. Se não peço, sou ingrata…
Ele segurou-me as mãos.
— Inês, tu és incrível. És uma mãe maravilhosa e uma mulher forte. Não deixes que ela te faça duvidar disso.
Queria acreditar nele. Mas as palavras da minha mãe ecoavam sempre mais alto na minha cabeça do que qualquer elogio.
As discussões tornaram-se mais frequentes. Um dia, durante um almoço de domingo em casa dela, tudo explodiu.
— Olha para ti! — gritou ela à frente de toda a família. — Nem sabes educar uma criança! A Leonor faz o que quer porque tu és mole!
Senti o sangue ferver-me nas veias.
— Chega! — levantei-me de repente. — Chega disto tudo! Eu faço o melhor que posso! Não sou perfeita como tu foste! Nunca vou ser!
O silêncio foi absoluto. A minha mãe ficou branca como a cal da parede. O meu irmão mais novo olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.
— Inês… — tentou ela começar.
— Não! — interrompi-a. — Estou cansada de tentar agradar-te! Estou cansada de sentir que falho sempre! Quero ser feliz à minha maneira!
Peguei na Leonor pela mão e saí dali sem olhar para trás.
Durante semanas não falámos. Senti um misto de alívio e culpa. O Rui apoiou-me sempre, mas via nos olhos dele a preocupação: e se eu nunca conseguisse perdoar a minha mãe? E se ela nunca mudasse?
Um dia recebi uma mensagem dela: “Preciso de falar contigo.”
Encontrei-a no café onde costumávamos lanchar quando eu era miúda. Estava diferente: mais magra, os olhos cansados.
— Desculpa — disse ela antes de eu conseguir abrir a boca. — Eu só queria proteger-te… Mas acho que acabei por te magoar mais do que ajudar.
As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Pela primeira vez vi a minha mãe vulnerável, despida daquela armadura de mulher invencível.
— Eu só queria que tivesses tudo aquilo que eu não tive…
Abracei-a. Chorámos as duas ali mesmo, entre as chávenas de café e os bolos secos do balcão.
A relação não ficou perfeita depois disso. Ainda discutimos, ainda há dias em que sinto o peso das expectativas dela sobre os meus ombros. Mas aprendi a pôr limites. Aprendi que posso amar sem me anular.
Hoje olho para a Leonor e penso: será que um dia vou cometer os mesmos erros? Será possível quebrar este ciclo de exigência e desilusão? Ou será que todas as mães acabam por magoar as filhas sem querer?
E vocês? Também sentem este peso invisível das expectativas familiares? Como lidam com ele?