O Desafio das Três Perguntas: Revelações no Trilho da Serra da Estrela
— Vais mesmo sair assim, Leonor? — perguntou a minha mãe, a voz trémula entre a preocupação e a raiva contida. O relógio marcava quase meia-noite e o vento uivava lá fora, como se a própria Serra da Estrela quisesse impedir-me de sair.
— Não aguento mais esta casa, mãe! Preciso de respirar! — respondi, já com o casaco vestido e as botas a rangerem no soalho antigo. O meu pai, sentado à mesa da cozinha, nem levantou os olhos do jornal. Era sempre assim: ele calado, ela a tentar segurar tudo com palavras que já não tinham força.
— Leonor, por favor, fica. — A voz dela quebrou-se. — O teu irmão não voltou, o teu pai está assim… e eu… eu não sei o que fazer.
Olhei para ela e vi, pela primeira vez em anos, o medo verdadeiro nos olhos dela. Não era só medo do frio ou da noite. Era medo de me perder também. Mas naquele momento, sentia-me tão sufocada que nem a compaixão me segurava.
Saí. O ar gelado cortou-me a cara como uma bofetada. Caminhei sem destino, os passos afundando-se na neve fina. Lembrei-me das três perguntas que o professor de Filosofia nos tinha lançado naquela semana: “O que procuras? O que temes? O que não consegues perdoar?” Na altura, ri-me. Agora, cada palavra pesava como uma pedra no peito.
O meu irmão, Tiago, desaparecera há dois dias. Tinha saído para uma caminhada na serra e não voltou. A GNR procurava-o, os vizinhos cochichavam e a minha mãe chorava baixinho todas as noites. O meu pai? Limitava-se a existir, como se já tivesse desistido de tudo.
Sentei-me numa pedra gelada junto ao velho carvalho onde costumávamos brincar em pequenos. O silêncio era tão denso que quase doía. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem ao Tiago: “Volta para casa. Por favor.” Apaguei antes de enviar. Que sentido fazia?
De repente, ouvi passos na neve atrás de mim. Virei-me num sobressalto.
— Leonor? És tu? — Era o Rui, o vizinho do lado, com quem crescemos. Trazia uma lanterna e um ar preocupado.
— O que fazes aqui? — perguntei, tentando esconder as lágrimas.
— A tua mãe ligou-me… Disse que tinhas saído. Ela está desesperada, Leonor.
— E tu? Porque vieste mesmo?
Ele hesitou antes de responder:
— Porque também estou preocupado contigo. E com o Tiago…
Ficámos em silêncio por um momento. Depois, Rui sentou-se ao meu lado.
— Lembras-te daquele verão em que nos perdemos aqui perto? — perguntou ele, com um sorriso triste.
— Lembro… O Tiago encontrou-nos antes de escurecer. Ele era sempre o corajoso.
— E tu eras sempre a teimosa — disse ele, tentando aliviar o peso da conversa.
Sorri pela primeira vez em dias. Mas logo o sorriso se desfez.
— Achas que ele está… — Não consegui terminar a frase.
Rui pousou a mão sobre a minha.
— Não penses nisso agora. Vamos procurá-lo amanhã outra vez. Mas hoje… volta para casa. Por favor.
Levantei-me devagar. O caminho de volta pareceu interminável. Quando entrei em casa, a minha mãe correu para mim e abraçou-me com tanta força que quase me partiu as costelas.
— Desculpa — sussurrei-lhe ao ouvido.
Nessa noite não dormi. Fiquei deitada a olhar para o teto, as três perguntas do professor martelando-me a cabeça:
O que procuro? Procuro paz. Procuro o Tiago. Procuro uma família que já não sei se existe.
O que temo? Temo perder quem amo. Temo nunca ser suficiente para os meus pais. Temo nunca sair desta aldeia e viver uma vida igual à deles: cheia de silêncios e arrependimentos.
O que não consigo perdoar? Não consigo perdoar o meu pai por nunca ter lutado por nós. Não consigo perdoar o Tiago por ter desaparecido quando mais precisávamos dele. E não consigo perdoar-me por querer fugir quando devia ficar.
Na manhã seguinte, acordei com vozes na cozinha. Desci as escadas devagar e vi o meu pai ao telefone, a voz mais firme do que nunca:
— Sim, sim… Encontraram-no? Está bem?
O coração disparou-me no peito. A minha mãe tapou a boca com as mãos e começou a chorar antes mesmo de ouvir a resposta completa.
O Tiago estava vivo. Tinha sido encontrado por um pastor, desidratado e ferido numa perna, mas vivo.
Corremos para o hospital de Seia como se voássemos. Quando entrei no quarto dele, vi-o mais magro e pálido do que nunca, mas com aquele sorriso maroto de sempre.
— Então, mana teimosa… — disse ele, estendendo-me a mão.
Chorei como uma criança enquanto o abraçava.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções: alívio, raiva, gratidão e culpa misturavam-se dentro de mim como um vendaval. O Tiago contou-nos tudo: tinha escorregado numa ravina e ficado preso sem conseguir andar. Sobreviveu graças à água da neve e à esperança de ser encontrado.
Numa noite em que todos já dormiam no hospital, sentei-me ao lado dele e finalmente falei:
— Porque foste sozinho para a serra?
Ele olhou para mim com olhos cansados:
— Porque precisava fugir daqui… Como tu querias ontem à noite.
Ficámos em silêncio longo tempo até ele perguntar:
— E tu? Já sabes o que procuras?
Balancei a cabeça:
— Acho que sim… Procuro coragem para mudar as coisas ou para aceitar aquilo que não posso mudar.
Ele sorriu:
— Então já tens mais do que eu tinha quando saí daqui.
Quando regressámos à aldeia, nada estava igual — mas também nada estava totalmente diferente. O meu pai começou finalmente a falar mais connosco; a minha mãe deixou de tentar controlar tudo sozinha; e eu… comecei a responder às perguntas difíceis sem medo das respostas.
Agora pergunto-me: quantos de nós têm coragem de enfrentar as perguntas mais simples e dolorosas da vida? E vocês — já responderam honestamente às vossas três perguntas?