O Coração do Pequeno Tomás: O Escolha de uma Mãe

— Dona Helena, precisa vir ao hospital. É urgente.

A voz do médico soava distante, como se viesse de outro mundo. O telefone tremia nas minhas mãos, e o relógio da cozinha marcava 2h17 da manhã. O meu marido, Rui, olhou-me com olhos arregalados, tentando decifrar o que se passava. Eu só consegui balbuciar:

— É o Tomás…

Corremos para o Hospital de Santa Maria como se a velocidade pudesse reverter o tempo. O cheiro a desinfetante, as luzes brancas, os corredores intermináveis — tudo parecia um pesadelo do qual eu não conseguia acordar. Quando chegámos, uma enfermeira levou-nos para uma sala pequena, onde o Dr. Carvalho nos esperava com um olhar pesado.

— O Tomás sofreu um acidente grave. Fizemos tudo o que podíamos… mas…

As palavras dele perderam-se num zumbido. Senti as pernas cederem e caí nos braços do Rui. O meu filho, o meu menino de oito anos, não voltaria para casa. Lembrei-me do seu sorriso naquela manhã, quando me pediu para lhe pôr mais manteiga no pão e disse que queria ser astronauta. Como é que a vida pode mudar assim, num instante?

Os dias seguintes foram um borrão de lágrimas, visitas de familiares e vizinhos, e silêncios ensurdecedores. A minha mãe, Dona Amélia, tentava consolar-me:

— Filha, tens de ser forte. O Tomás era um anjo.

Mas eu não queria ser forte. Queria gritar, partir tudo à minha volta, exigir explicações a Deus ou ao destino ou ao que quer que fosse responsável por isto.

Na terceira noite sem dormir, bateram à porta. Era o Dr. Carvalho outra vez, desta vez acompanhado por uma senhora de bata branca e olhar doce.

— Dona Helena, precisamos falar consigo e com o seu marido sobre uma decisão muito importante…

O Rui apertou-me a mão com força. O médico explicou-nos que o Tomás estava em morte cerebral e que havia uma criança em Coimbra à espera de um coração. Uma menina chamada Inês.

— Sei que é um momento terrível, mas… há uma hipótese de dar vida a outra criança.

Senti-me sufocar. Como é que alguém pode pedir isto a uma mãe? Dar o coração do meu filho? O Rui chorava em silêncio. A minha cabeça girava: seria isto um acto de amor ou uma traição à memória do Tomás?

— Preciso de tempo — pedi.

Fui até ao quarto do Tomás. Sentei-me na sua cama, abracei o seu urso de peluche preferido e chorei como nunca tinha chorado antes. Lembrei-me das vezes em que ele me perguntava porque é que as pessoas morriam e eu respondia com histórias bonitas sobre anjos e estrelas.

A minha irmã Marta ligou-me:

— Helena, se fosse contigo… se fosse a Inês a precisar…

A voz dela ecoou na minha cabeça durante horas. E se fosse comigo? E se eu pudesse salvar outra mãe desta dor?

Na manhã seguinte, olhei para o Rui e vi nele a mesma dúvida, a mesma dor. Mas também vi esperança.

— O Tomás era generoso — disse ele. — Acho que ele gostaria de ajudar outra criança.

Assinei os papéis com as mãos a tremer. Senti-me vazia e cheia ao mesmo tempo — vazia porque nunca mais ouviria o coração do meu filho bater junto ao meu peito; cheia porque talvez esse coração continuasse a bater noutro corpo pequenino.

O funeral foi simples, mas cheio de amor. Os colegas da escola fizeram desenhos para pôr junto à urna. A professora Ana leu um texto bonito sobre como o Tomás era amigo de todos e sonhava em ir à Lua.

Os dias passaram devagar. A casa parecia demasiado grande sem os risos do Tomás. O Rui voltou ao trabalho cedo demais; eu não conseguia sair da cama. A minha mãe fazia sopa e tentava convencer-me a comer:

— Tens de cuidar de ti, filha.

Mas eu só queria desaparecer.

Um mês depois, recebi uma carta do hospital. Era da mãe da Inês.

“Querida Helena,
Não há palavras para agradecer o que fez pela minha filha. O coração do Tomás bate agora no peito da Inês e cada batida é um milagre. Penso em si todos os dias e prometo cuidar deste presente com todo o amor do mundo.”

Li aquela carta dezenas de vezes. Chorei por mim, pelo Tomás, pela Inês e pela mãe dela. Pela primeira vez desde aquela noite maldita, senti um fio ténue de esperança.

A vida nunca voltou a ser igual. Houve dias em que odiei o mundo inteiro; outros em que agradeci por ter tido o Tomás nem que fosse por oito anos. A relação com o Rui ficou tensa — discutíamos por tudo e por nada:

— Tu segues em frente como se nada tivesse acontecido! — gritei-lhe uma noite.
— Não digas isso! Sofro tanto como tu! — respondeu ele, atirando uma chávena contra a parede.

A Marta tentou ajudar-nos a reconciliar:

— Vocês precisam um do outro agora mais do que nunca.

Fomos juntos ao psicólogo, tentámos reconstruir-nos aos bocados. Lentamente, aprendemos a falar sobre o Tomás sem nos destruirmos mutuamente.

Um ano depois do acidente, recebi outro telefonema do hospital:

— Dona Helena? A Inês gostava muito de conhecê-la…

O coração bateu-me descompassado. Aceitei encontrar-me com ela e com a mãe num jardim em Lisboa. Quando vi aquela menina frágil correr na minha direção com um sorriso tímido, senti algo inexplicável — como se uma parte do Tomás estivesse ali comigo.

A mãe da Inês abraçou-me com força:

— Obrigada… obrigada por tudo.

Olhei para a Inês e perguntei-lhe:

— Sabes quem era o menino que te deu este coração?
Ela assentiu com a cabeça:
— Era um menino muito corajoso.

Sorri através das lágrimas. Naquele momento percebi que o amor não morre; transforma-se.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito outra escolha? Teria tido coragem se não fosse pela Inês? E vocês — conseguiriam dar este passo no momento mais difícil das vossas vidas?