O Coração de Uma Mãe Não Tem Limites: A Minha Luta Pela Vida dos Meus Filhos
— Mariana, tens de pensar nos teus outros filhos. E em ti. Não podes pôr tudo em risco! — A voz da minha mãe ecoava pelo corredor do hospital de Santa Maria, em Lisboa, enquanto eu, deitada na maca, sentia o coração a bater descompassado, não só pelo cansaço da gravidez, mas pelo peso das palavras dela.
Olhei para o tecto branco, as luzes fluorescentes a piscarem como se me quisessem acordar deste pesadelo. Oiço o médico repetir, pela terceira vez: — Mariana, o seu coração está demasiado fraco. Uma gravidez de trigémeos é um risco enorme. Temos de considerar a redução selectiva.
Redução selectiva. Palavras frias para um acto impossível. Escolher qual dos meus bebés não teria direito à vida. Como se fosse possível ser mãe só de dois quando já sentia três corações a bater dentro de mim.
O Pedro, meu marido, estava sentado ao meu lado, as mãos entrelaçadas nas dele, os olhos vermelhos de noites sem dormir. — Mariana, eu não quero perder-te. Não quero perder nenhum deles. Mas não posso perder-te a ti.
Senti-me esmagada entre o amor de mãe e o medo de morrer. Oiço a minha mãe insistir: — Mariana, pensa na Matilde e no Tomás. Eles precisam de ti. Não podes ser egoísta.
Egoísta? Era egoísmo querer dar vida aos meus filhos? Ou seria egoísmo escolher viver à custa da morte de um deles? O Pedro apertou-me a mão. — Vamos pensar juntos. Não estás sozinha.
Mas eu sentia-me sozinha. Tão sozinha como nunca antes na vida. Lembrei-me do dia em que soube que estava grávida outra vez, depois de anos a tentar, depois de dois abortos espontâneos e de uma esperança quase morta. Quando o médico disse “três corações”, chorei de alegria e medo ao mesmo tempo.
Agora, estava ali, com 19 semanas, e tinha de decidir quem vivia e quem morria. Passei noites sem dormir, ouvindo os conselhos de todos: médicos, família, amigos. Cada um com uma opinião diferente. A minha sogra dizia: — Mariana, Deus sabe o que faz. Entrega nas mãos Dele.
Mas eu não conseguia entregar nada a ninguém. Era eu que tinha de assinar aquele papel. Eu que tinha de viver com as consequências.
Naquela noite, no hospital, ouvi o choro abafado da Matilde pelo telefone: — Mãe, quando vens para casa? Tenho saudades tuas.
Senti uma dor aguda no peito. E se nunca mais voltasse? E se ela crescesse sem mãe? O Tomás, mais pequeno, ainda não percebia bem o que se passava, mas sentia a ausência no olhar triste quando vinha visitar-me.
O Pedro tentou animar-me: — Vamos dar a volta por cima. Somos fortes.
Mas eu via o medo nos olhos dele. O medo de me perder. O medo de perder tudo.
Na manhã seguinte, o médico voltou ao quarto com um ar grave: — Mariana, temos pouco tempo para decidir. O seu coração está a falhar. Se não fizermos nada, pode ser fatal para si e para os bebés.
Chorei como nunca tinha chorado antes. Senti raiva do destino, raiva do meu corpo fraco, raiva do mundo inteiro por me obrigar a escolher.
Nessa noite, sonhei com os três bebés a sorrirem para mim. Acordei com uma certeza estranha: não ia desistir de nenhum deles.
— Pedro — disse-lhe ao amanhecer — não vou escolher entre os nossos filhos. Se tiver de morrer, morro por eles.
Ele chorou comigo. — Não quero perder-te…
— Mas também não quero viver com o peso desta escolha — respondi.
Os médicos ficaram chocados com a minha decisão. Tentaram convencer-me até ao último momento. — Mariana, isto é suicídio!
Mas eu mantive-me firme.
As semanas seguintes foram um inferno. Fui internada em repouso absoluto. Cada dia era uma vitória e uma tortura: exames constantes, injecções para amadurecer os pulmões dos bebés, medicação para o coração…
A minha mãe vinha todos os dias rezar ao meu lado. Às vezes discutíamos:
— Estás a pôr tudo em risco! — gritava ela.
— Não me peças para escolher entre os meus filhos! — gritava eu de volta.
O Pedro tentava ser mediador, mas também ele estava à beira do colapso.
A Matilde começou a ter pesadelos à noite e a fazer xixi na cama outra vez. O Tomás ficou mais calado do que nunca. Senti que estava a destruir a minha família com esta decisão.
No hospital, fiz amizade com a enfermeira Rosa, uma mulher doce do Alentejo que me contava histórias para me distrair:
— Sabes, Mariana? A minha mãe também teve uma gravidez difícil e sobreviveu contra todas as expectativas dos médicos… Às vezes o amor faz milagres.
Agarrei-me àquelas palavras como se fossem salvação.
Finalmente chegou o dia do parto. Estava com 32 semanas e já não aguentava mais. O meu coração estava por um fio. Os médicos prepararam tudo para uma cesariana de emergência.
Antes de entrar no bloco operatório, despedi-me do Pedro com um beijo trémulo:
— Amo-te… cuida dos nossos filhos se eu não voltar.
Ele chorou como nunca o tinha visto chorar.
Acordei horas depois numa sala cheia de luzes e barulhos estranhos. Senti uma dor aguda no peito e pensei que tinha morrido… mas depois ouvi três choros diferentes ao longe.
— Mariana! Conseguiste! — disse a enfermeira Rosa com lágrimas nos olhos.
Os três bebés estavam vivos: Leonor, Francisco e Inês. Prematuros, frágeis como passarinhos caídos do ninho… mas vivos.
Passei semanas na UCI cardíaca e eles na neonatologia. Houve complicações: infeções, transfusões… noites em claro à espera de notícias boas ou más.
A minha mãe veio pedir-me desculpa:
— Fui dura contigo… Só queria proteger-te…
Abracei-a com força:
— Eu sei… também tive medo.
O Pedro tornou-se pai e mãe durante meses: cuidava da Matilde e do Tomás em casa, vinha visitar-nos todos os dias ao hospital e ainda trabalhava à noite para pagar as contas que se acumulavam.
Quando finalmente fomos todos para casa, já nada era igual. Eu estava mais fraca fisicamente mas mais forte por dentro. Os trigémeos cresceram devagarinho mas cheios de vontade de viver.
A família ficou marcada por esta provação: houve discussões que nunca sararam completamente; houve amizades que se perderam pelo caminho; houve noites em que chorei sozinha no silêncio da casa adormecida.
Mas também houve momentos de felicidade pura: o primeiro sorriso dos bebés; o abraço apertado da Matilde; o Tomás a dizer “gosto muito de ti” sem razão aparente; o Pedro a olhar para mim como se fosse a mulher mais corajosa do mundo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria escolhido salvar-me a mim própria em vez deles? Não sei responder… Sei apenas que o amor de mãe é maior do que qualquer medo ou dor.
E vocês? O que fariam no meu lugar? Conseguiriam escolher entre salvar-se ou salvar os vossos filhos?