O Convidado Inesperado: Quando a Chegada do Meu Pai Mudou Tudo

— Outra vez, Ana? Vais mesmo deixar o teu pai ficar cá este fim de semana? — perguntei, tentando controlar o tom da minha voz, mas sentindo já o nó apertado no estômago.

Ela não me olhou. Limitou-se a encolher os ombros enquanto arrumava a loiça na cozinha. — Ele sente-se sozinho desde que a mãe morreu. Não posso simplesmente dizer-lhe que não venha.

Fiquei ali parado, com as mãos nos bolsos, a olhar para as costas dela. O cheiro do café ainda pairava no ar, misturado com o perfume suave do detergente. O relógio da parede marcava 21h17 e eu sabia que, dentro de poucas horas, o senhor António estaria à porta com a sua mala castanha e aquele olhar de quem julga tudo à sua volta.

Desde que nos mudámos para Lisboa, tudo parecia ter mudado. Eu e a Ana tínhamos deixado o Porto para trás, os amigos, os cafés de sempre, até o sotaque. Viemos à procura de oportunidades, de uma vida nova. Mas ninguém me avisou que recomeçar podia ser tão solitário.

O senhor António começou por vir uma vez por mês. Depois, uma vez por quinzena. Agora, era raro o fim de semana em que não aparecia. Sentava-se à mesa como se fosse o dono da casa, criticava o meu café — “No Porto é que se faz café a sério” — e perguntava-me sempre quando é que eu ia arranjar um emprego “a sério”. Eu sorria, fingia não me importar, mas cada palavra dele era como um prego cravado na madeira já gasta da minha paciência.

Naquela sexta-feira, quando a campainha tocou, senti o coração acelerar. A Ana abriu a porta e abraçou o pai com força. Eu fiquei atrás, a tentar sorrir.

— Então, Dário! Ainda sem novidades do trabalho? — perguntou ele logo ao entrar.

— Estou à espera de resposta de duas entrevistas — respondi, tentando manter a voz firme.

Ele assentiu com um ar de quem já sabia o desfecho. — Pois, pois… Hoje em dia só trabalha quem quer.

A Ana lançou-me um olhar suplicante para não reagir. Engoli em seco e fui buscar as malas dele ao carro.

O jantar foi um desfile de silêncios e comentários passivo-agressivos. O senhor António elogiava tudo o que a Ana fazia — “A minha filha sempre foi prendada” — e ignorava os meus esforços. Quando tentei falar sobre um projeto freelance que estava a desenvolver, ele interrompeu:

— Isso são coisas de miúdos. O que tu precisas é de estabilidade.

Senti-me pequeno, quase invisível. Depois do jantar, fui para a varanda fumar um cigarro. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me se algum dia me sentiria em casa ali.

No sábado de manhã, acordei com vozes na cozinha. O senhor António falava alto sobre política e futebol, criticando tudo e todos. A Ana ria-se, mas eu percebia que era um riso nervoso. Quando entrei na cozinha, ele olhou-me de cima a baixo.

— Vê lá se aprendes alguma coisa hoje — disse-me, apontando para o jornal aberto na mesa.

Sentei-me em silêncio. A Ana tentou mudar de assunto:

— Pai, deixa lá o Dário em paz…

— Eu só quero o melhor para vocês — respondeu ele, mas o tom era mais de acusação do que de preocupação.

À tarde, fomos ao supermercado. O senhor António insistiu em pagar tudo e fez questão de escolher cada produto.

— Isto é que é azeite! Não essas modernices que vocês compram — dizia ele alto, para toda a gente ouvir.

No carro, a Ana suspirou:

— Ele só quer ajudar…

— Não é isso que parece — respondi baixo, mas ela fingiu não ouvir.

À noite, depois do jantar, tentei falar com ela no quarto.

— Ana, isto não pode continuar assim. Sinto-me um estranho na minha própria casa.

Ela olhou-me com lágrimas nos olhos:

— Ele é meu pai… Não posso deixá-lo sozinho agora.

— E eu? Vais deixar-me sozinho?

Ela não respondeu. Virou-se para o lado e apagou a luz.

Os dias passaram assim: silêncios pesados, olhares evitados, discussões abafadas pelo medo de magoar ainda mais. Comecei a sair mais vezes sozinho: caminhava pelas ruas de Lisboa sem destino certo, só para respirar outro ar que não aquele da nossa casa carregada de tensão.

Uma tarde encontrei o Miguel num café perto do Chiado. Era um amigo antigo do Porto que também tinha vindo tentar a sorte na capital.

— Estás com má cara, pá… — disse ele depois de me ouvir desabafar.

— Sinto que estou a perder tudo: a Ana, a minha paz… até a vontade de lutar.

Ele ficou calado uns segundos antes de responder:

— Tens de falar com ela. A sério. Não podes deixar isto arrastar-se até rebentar.

Voltei para casa decidido a tentar mais uma vez. O senhor António estava na sala a ver televisão. A Ana estava na varanda.

— Podemos falar? — perguntei baixinho.

Ela assentiu e fechou a porta atrás de nós.

— Eu amo-te — comecei eu — mas não aguento mais viver assim. Preciso de sentir que esta casa também é minha… Preciso de ti.

Ela chorou baixinho durante minutos intermináveis. Depois abraçou-me com força:

— Eu também preciso de ti… Só não sei como fazer isto sem magoar ninguém.

Nessa noite dormimos abraçados pela primeira vez em semanas. No domingo de manhã, antes do pequeno-almoço, ela falou com o pai:

— Pai… tens de perceber que precisamos do nosso espaço. Podes vir visitar-nos sempre que quiseres, mas não pode ser todos os fins de semana…

O senhor António ficou calado durante uns segundos eternos. Depois levantou-se devagar:

— Eu só queria ajudar… Mas percebo. Vou tentar dar-vos mais espaço.

Quando ele saiu nesse domingo à tarde, senti um alívio tão grande que quase chorei. Abracei a Ana na cozinha e ficámos ali em silêncio, finalmente juntos outra vez.

Ainda hoje tenho medo que tudo volte atrás ao mínimo sinal de fraqueza. Mas aprendi que às vezes é preciso perder quase tudo para perceber o que realmente importa.

Será que algum dia conseguimos mesmo encontrar equilíbrio entre cuidar dos nossos pais e proteger o nosso amor? Quantos de nós já passaram por isto sem saber como sair? Gostava mesmo de saber as vossas histórias.