O Convidado Indesejado à Mesa do Jantar
— Não acredito que ele veio mesmo, — pensei, enquanto ouvia a porta bater e o som arrastado dos sapatos pelo corredor. O cheiro do arroz de pato da minha cunhada, Vera, enchia a casa, mas o meu estômago já se embrulhava antes sequer de me sentar à mesa.
— Olá, Mariana! — disse o meu irmão Rui, forçando um sorriso. — Trouxe o Jorge, espero que não te importes.
Importar-me? O Jorge era um amigo antigo do Rui, homem de meia-idade, sempre com um ar desleixado e uma gargalhada que me fazia estremecer. Não era só por isso. Havia histórias antigas, segredos sussurrados entre portas, e uma sensação de desconforto que nunca consegui explicar.
Ele entrou sem cerimónia, largou o casaco na cadeira e sentou-se logo à mesa, sem sequer lavar as mãos. Vi as marcas de óleo nas unhas e as nódoas na camisa. Vera lançou-me um olhar aflito, mas manteve-se calada.
— Então, Mariana, ainda a trabalhar naquele escritório? — perguntou Jorge, já a servir-se do vinho.
— Sim, continuo lá. — respondi seca, tentando não olhar para as mãos dele a mexer nos talheres.
O jantar começou com conversas banais sobre trânsito e futebol. Mas eu sentia o peso de cada palavra não dita. Rui tentava manter o ambiente leve, mas a tensão era palpável. Vera servia os pratos em silêncio, os olhos baixos.
— Sabes que o Rui sempre foi o meu melhor amigo, não sabes? — disse Jorge, olhando-me de lado. — Sempre estivemos juntos em tudo.
A frase ficou no ar como uma ameaça velada. Lembrei-me das noites em que Rui chegava tarde a casa quando éramos miúdos, das discussões abafadas entre os meus pais por causa das más companhias. Lembrei-me também da vez em que apanhei Jorge a roubar dinheiro da carteira da minha mãe e do silêncio cúmplice do meu irmão.
— Pois, lembro-me bem. — respondi, tentando controlar o tremor na voz.
O jantar prosseguiu entre silêncios constrangedores e risos forçados. Jorge falava alto, interrompia toda a gente e criticava tudo: o tempero do arroz, a decoração da casa, até o vinho barato.
— Isto é vinho de pacote? — perguntou com desdém. — Nos meus tempos só se bebia vinho a sério.
Rui riu-se nervoso. Vera mordeu o lábio. Eu já não aguentava mais.
— Se não gostas, ninguém te obriga a ficar. — disparei, surpreendendo-me com a dureza da minha voz.
O silêncio caiu como uma pedra. Jorge olhou-me com desprezo.
— Olha que a menina cresceu! — disse ele, sarcástico. — Mas continua convencida que é melhor que os outros.
Rui tentou intervir:
— Mariana, não vale a pena…
Mas eu já não conseguia parar:
— Rui, chega! Sempre protegeste este homem mesmo quando sabias que ele fazia mal à nossa família! Quantas vezes te pedi para não o trazeres cá? Quantas vezes viste a mãe chorar por tua causa?
Vera pousou os talheres com força na mesa. O pequeno Tomás começou a chorar no quarto ao lado.
Jorge levantou-se devagar:
— Não preciso de ouvir isto. Vim aqui por respeito ao teu irmão. Mas vejo que nesta casa ainda se vive de rancores antigos.
Saiu sem olhar para trás. O som da porta a bater ecoou pela casa.
Rui ficou sentado, de cabeça baixa. Vera foi buscar Tomás ao quarto e voltou com ele ao colo, tentando acalmá-lo.
— Mariana… — começou Rui, mas eu interrompi-o:
— Não quero desculpas. Só quero saber porque é que nunca escolheste a tua família em vez dele.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez naquela noite:
— Porque ele era o único amigo que eu tinha quando tudo desabou cá em casa. Quando o pai saiu e tu te fechaste no teu mundo. Eu precisava dele…
As lágrimas caíram-lhe pelo rosto. Senti um nó na garganta.
— E nós? Nós não precisávamos de ti? — perguntei baixinho.
Vera pousou uma mão no meu ombro:
— Talvez todos tenhamos precisado uns dos outros e nunca soubemos pedir ajuda.
O jantar acabou ali. Levantei-me e fui buscar o casaco. Antes de sair, olhei para Rui:
— Ainda vais continuar a escolher quem te faz mal só porque tens medo de ficar sozinho?
Saí para a rua fria da noite lisboeta com o coração apertado. Caminhei sem rumo pelas ruas iluminadas pelos candeeiros antigos, sentindo o peso dos anos de silêncios e ressentimentos acumulados.
No caminho para casa perguntei-me: quantas famílias vivem assim, presas ao passado por medo de enfrentar as suas próprias dores? Será que algum dia vamos conseguir perdoar-nos uns aos outros e seguir em frente? E vocês… já tiveram de enfrentar fantasmas antigos à mesa do jantar?