O Comportamento Estranho da Nova Ama: Um Dilema Familiar Português
— Não achas estranho, Miguel? — perguntei-lhe, tentando manter a voz baixa enquanto as crianças brincavam na sala ao lado. — A Dona Lurdes… ela olha para ti de uma maneira que me incomoda.
Miguel suspirou, desviando o olhar do jornal. — Estás a imaginar coisas, Sofia. Ela é uma senhora de confiança, as crianças adoram-na. Não compliques.
Mas eu sabia que não era imaginação. Desde o primeiro dia em que Dona Lurdes entrou na nossa casa, com o seu sorriso largo e olhos atentos, senti um arrepio. Era uma mulher robusta, de cabelo grisalho apanhado num coque apertado, vestida sempre de forma impecável. As crianças, o Tomás de cinco anos e a Leonor de três, renderam-se logo ao seu jeito carinhoso e às histórias que contava sobre a infância em Trás-os-Montes. Mas havia algo nos seus gestos — um toque demorado no braço do Miguel quando lhe servia café, um olhar prolongado quando ele chegava do trabalho — que me deixava desconfortável.
Tudo começou há três semanas, quando a nossa antiga ama, a Dona Rosa, teve de regressar ao Alentejo para cuidar da mãe doente. Eu e o Miguel trabalhamos ambos em Lisboa, ele como engenheiro civil e eu como enfermeira no Hospital de Santa Maria. Não tínhamos família por perto e não podíamos tirar licença. O anúncio no OLX foi respondido por várias candidatas, mas Dona Lurdes destacou-se: referências impecáveis, experiência de décadas e uma simpatia contagiante.
No início, tudo parecia correr bem. As crianças estavam felizes, a casa arrumada e até os vizinhos elogiavam a nova ama. Mas à medida que os dias passavam, comecei a notar pequenas coisas. Um perfume intenso pairava no corredor depois dela passar. O Miguel ria-se mais quando ela estava por perto. Uma noite, ao chegar mais cedo do hospital, ouvi risos vindos da cozinha. Espreitei pela porta entreaberta e vi Dona Lurdes a contar uma anedota ao Miguel, ambos inclinados sobre a mesa, demasiado próximos para o meu gosto.
— Não achas que estás a exagerar? — perguntou-me a minha irmã Inês ao telefone. — Se ela trata bem os miúdos e é de confiança…
— Não sei, Inês. Sinto-me uma estranha na minha própria casa. Parece que ela está sempre a observar-me, como se estivesse à espera de um deslize meu.
A tensão foi crescendo. Comecei a chegar mais cedo do trabalho sempre que podia. Certa tarde, apanhei Dona Lurdes a arrumar as camisas do Miguel no armário do nosso quarto. — Só estava a ajudar — disse ela com um sorriso enigmático. — Vi que estavam amarrotadas.
Contei ao Miguel, mas ele desvalorizou. — Ela só quer ajudar, Sofia. Não faças disso um drama.
Mas não era só isso. Uma noite, enquanto adormecia a Leonor, ouvi vozes baixas na sala. Fui pé ante pé até à porta e ouvi Dona Lurdes dizer: — O senhor Miguel merece alguém que cuide dele como deve ser.
O meu coração disparou. Entrei na sala de rompante. — Está tudo bem aqui?
Miguel levantou-se abruptamente. — Claro! Dona Lurdes estava só a dizer que fez arroz doce para amanhã.
Naquela noite quase não dormi. O medo de estar a perder o controlo da minha família misturava-se com vergonha por desconfiar de uma mulher que só tinha mostrado dedicação às crianças.
No dia seguinte, decidi falar com Dona Lurdes diretamente. Esperei até as crianças estarem entretidas com desenhos animados e sentei-me com ela na cozinha.
— Dona Lurdes, queria pedir-lhe para não arrumar as coisas do Miguel no nosso quarto. Prefiro tratar disso eu.
Ela olhou-me nos olhos, sem perder o sorriso. — Claro, menina Sofia. Só queria ajudar… mas compreendo perfeitamente.
Senti-me pequena perante aquela resposta tão calma. Mas nos dias seguintes reparei que ela passou a ser mais distante comigo e ainda mais atenciosa com o Miguel.
As crianças começaram a perguntar porque é que eu estava sempre tão séria. O Tomás disse-me: — A Dona Lurdes diz que as mães precisam de descansar mais e confiar nas amas.
Fiquei furiosa. Quem era ela para falar assim aos meus filhos?
Nessa noite, depois de deitar as crianças, sentei-me com o Miguel na sala.
— Temos de falar sobre a Dona Lurdes. Não me sinto confortável com ela cá em casa.
Ele olhou-me cansado. — Sofia, não podemos despedir alguém só porque tens ciúmes.
— Não são ciúmes! É instinto! Ela está a ultrapassar limites!
Discutimos durante horas. Pela primeira vez em anos de casamento, senti uma distância entre nós que não sabia como ultrapassar.
No dia seguinte acordei decidida: ia despedir Dona Lurdes. Mas quando cheguei a casa ao fim do dia encontrei-a sentada no sofá com as crianças ao colo, todos a rirem-se com um livro de histórias antigo. O Tomás correu para mim: — Mamã! A Dona Lurdes ensinou-nos uma canção nova!
O meu coração apertou-se. Como podia afastar alguém que fazia tão bem aos meus filhos? Mas como podia ignorar o mal-estar crescente dentro de mim?
Procurei conselhos junto da minha mãe:
— Filha, às vezes as pessoas mais velhas sentem-se sozinhas e procuram companhia onde podem… Mas nunca deixes ninguém pôr em causa o teu lugar na tua família.
As palavras dela ecoaram em mim durante dias.
Na sexta-feira seguinte cheguei mais cedo do trabalho e encontrei Dona Lurdes na varanda ao telemóvel:
— Sim, sim… Ele é mesmo um homem bom… Não sei quanto tempo mais vou aguentar esta situação…
Quando me viu ficou pálida e desligou rapidamente.
Nessa noite chamei-a à cozinha e disse-lhe calmamente:
— Dona Lurdes, agradeço tudo o que fez pelas crianças… mas acho melhor terminarmos por aqui.
Ela não protestou. Apenas sorriu tristemente e disse:
— Compreendo… Às vezes as pessoas não sabem lidar com quem lhes faz bem.
No dia seguinte despediu-se das crianças com lágrimas nos olhos e saiu sem olhar para trás.
O silêncio que ficou em casa foi ensurdecedor durante dias. O Miguel ficou magoado comigo; as crianças perguntavam pela ama; eu sentia-me culpada e aliviada ao mesmo tempo.
Agora olho para trás e pergunto-me: fiz o certo? Ou deixei-me levar pelo medo de perder o controlo? Quantas vezes deixamos alguém entrar nas nossas vidas sem percebermos os riscos? E vocês… já sentiram algo assim dentro das vossas casas?