O Casamento do Meu Irmão e o Preço da Família

— Não é justo, mãe! O João sempre teve tudo de mão beijada, e agora quer vender a casa do pai para casar? — gritei, sentindo o sangue ferver nas veias. O cheiro do café queimado misturava-se ao ar pesado da cozinha, onde a minha mãe se encolhia junto ao fogão, as mãos trémulas a mexerem na chávena.

Ela não respondeu. Os olhos dela, cansados de tantas noites mal dormidas, fugiam dos meus. O meu pai, sentado à mesa com o jornal aberto mas sem ler uma linha, suspirou fundo.

— Filha, ele é teu irmão. Está a passar dificuldades. — A voz dele era baixa, quase um sussurro, como se tivesse medo de acordar fantasmas antigos.

Eu sabia que o João tinha perdido o emprego há seis meses. Sabia que a Ana, a noiva dele, estava grávida e que os dois viviam num T1 húmido em Chelas. Mas também sabia das vezes em que ele pediu dinheiro emprestado e nunca devolveu. Das discussões por causa do carro que ele bateu e deixou para os meus pais pagarem. Das promessas vazias.

Naquela manhã de sábado, tudo parecia desabar sobre nós. O João chegou sem avisar, com a Ana ao lado — ela de olhos inchados, ele com aquele ar de quem acha que o mundo lhe deve tudo.

— Preciso falar convosco — disse ele, sem rodeios. — Não tenho como pagar o casamento. Pensei… se vendêssemos a casa da aldeia, dava para tudo. E ainda sobrava para começarmos a nossa vida.

O silêncio foi tão denso que quase me sufocou. Vi a minha mãe levar a mão ao peito, como se lhe faltasse o ar.

— João, essa casa era do avô! — atirei eu. — É o único sítio onde ainda somos família. Onde passámos os natais todos juntos…

Ele encolheu os ombros.

— E então? Agora precisamos mais do dinheiro do que das memórias.

A Ana olhou para mim com lágrimas nos olhos.

— Por favor, Mariana… Não temos mais ninguém.

Senti-me dividida entre a compaixão e a raiva. Lembrei-me das tardes de verão na casa da aldeia: eu e o João a correr pelo quintal, a avó a fazer arroz doce na cozinha, o cheiro das laranjeiras no ar. Tudo isso parecia tão distante agora.

O meu pai levantou-se devagar.

— Não é uma decisão fácil — disse ele. — Mas não podemos vender assim uma parte de nós.

O João explodiu:

— Vocês nunca me ajudaram! Sempre foi a Mariana a menina dos vossos olhos! Agora que preciso, viram-me as costas?

A minha mãe chorava baixinho. Eu sentia-me culpada por não conseguir ceder, mas também furiosa por ele transformar tudo numa competição.

— Não é isso, João! — tentei explicar. — Mas tu sabes o que aquela casa significa para nós todos…

Ele virou-se para mim com um olhar magoado.

— Para ti! Porque tu tens tudo: emprego estável, namorado que te apoia… Eu só quero uma oportunidade!

A Ana agarrou-lhe o braço.

— João, por favor…

Mas ele já não ouvia ninguém. Saiu porta fora, batendo com força. Ficámos ali parados, cada um perdido nos seus pensamentos.

Nos dias seguintes, a tensão era insuportável. O João não atendia chamadas. A minha mãe andava como um fantasma pela casa. O meu pai fechava-se no quintal a arranjar ferramentas velhas.

Uma noite, sentei-me com eles à mesa da cozinha.

— E se ajudássemos o João de outra forma? — sugeri. — Podemos juntar algum dinheiro entre todos para ajudar no casamento, mas sem vender a casa.

A minha mãe abanou a cabeça.

— Ele não vai aceitar. Só pensa em grande…

O meu pai olhou para mim com tristeza.

— Às vezes penso onde foi que errámos…

No dia seguinte, fui ter com o João ao café onde costumava ir jogar às cartas. Estava sozinho, olhar perdido na chávena de bica.

— Vieste dizer que sou um falhado? — perguntou sem me olhar nos olhos.

Sentei-me à frente dele.

— Vim dizer que te amo. E que quero ajudar-te… mas não à custa de destruir o pouco que ainda nos une.

Ele ficou calado muito tempo. Depois passou as mãos pelo rosto.

— Não sabes o que é sentir que nunca chegas lá… Que tudo te escapa das mãos…

Senti um nó na garganta.

— Sei mais do que pensas. Mas vender aquela casa não vai resolver isso. Só vai criar mais mágoa.

Ele chorou pela primeira vez em muitos anos. Ficámos ali sentados em silêncio até anoitecer.

No fim, aceitou a nossa ajuda modesta: um casamento simples, só com os mais próximos, na igreja da aldeia. A casa ficou onde sempre esteve — cheia de memórias e esperança para os dias melhores que hão de vir.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias se desfazem por causa de dinheiro? Vale mesmo a pena sacrificar as raízes por um sonho passageiro? E vocês… até onde iriam por um irmão?