O Casamento de Leonardo: Entre Promessas e Segredos de Família

— Leonardo, por favor… vem rápido ao hospital. Traz os meus papéis do seguro. — A voz da minha mãe, Maria do Carmo, soava fraca, quase irreconhecível. O café onde eu e a Inês, minha noiva, estávamos a discutir a playlist do casamento pareceu desvanecer-se à minha volta. O mundo ficou suspenso naquele instante.

— O que se passa, mãe? — perguntei, já de pé, o coração a bater descompassado.

— Só vem… — e desligou.

A Inês olhou-me com preocupação. — Precisas de ir? Eu posso tratar do resto aqui.

— Não sei o que se passa, mas parece grave. Desculpa, amor. — Dei-lhe um beijo apressado na testa e saí quase a correr, deixando para trás os sonhos de valsas e sorrisos.

No caminho para casa da minha mãe, as ruas de Lisboa pareciam mais cinzentas do que nunca. O trânsito era um inferno e cada minuto parecia uma eternidade. Peguei nos papéis do seguro e fui direto para o Hospital de Santa Maria. O cheiro a desinfetante e as luzes frias dos corredores aumentavam o nó no estômago.

Encontrei-a numa maca, à espera de ser vista por um médico. Estava pálida, os olhos fundos. Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão.

— Mãe, o que aconteceu?

Ela hesitou. — Senti-me mal no trabalho… desmaiei. Não queria preocupar-te, mas…

— Não devias ter esperado tanto para me ligar! — A raiva misturava-se com o medo.

Ela sorriu, cansada. — Tu já tens tanto com que te preocupar… o casamento, a casa nova…

O médico apareceu e pediu-me para sair enquanto a examinavam. Fiquei no corredor, a olhar para as paredes brancas e frias, a pensar em tudo o que podia correr mal. Lembrei-me do meu pai, que nos deixou quando eu tinha dez anos. Desde então, éramos só nós dois contra o mundo.

Quando finalmente me chamaram, o médico foi direto ao assunto:

— A sua mãe tem uma anemia severa e precisamos de fazer exames mais aprofundados. Há quanto tempo ela anda assim?

Olhei para ela, mas ela desviou o olhar.

— Não sei… — respondi, sentindo-me impotente.

O médico suspirou. — Vamos interná-la para observação.

Fiquei com ela até tarde. Entre silêncios e olhares trocados, percebi que havia mais qualquer coisa. Quando finalmente ficámos sozinhos, arrisquei:

— Mãe… há algo que não me estás a contar?

Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.

— Leonardo… há coisas do passado que nunca te contei porque achei que te estava a proteger.

Senti um arrepio. — Que coisas?

Ela olhou-me nos olhos, lágrimas a brilhar.

— O teu pai… ele não morreu num acidente como te disse. Ele foi embora porque descobriu que eu estava grávida de outro homem.

O chão fugiu-me dos pés.

— Como assim? Eu não sou filho dele?

Ela abanou a cabeça devagarinho.

— Não és filho biológico do António. Ele soube pouco antes de tu nasceres… tentou perdoar-me, mas não conseguiu. Por isso é que desapareceu.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Toda a minha vida tinha sido construída em cima de uma mentira? E agora? Quem era eu afinal?

Levantei-me abruptamente.

— Preciso de sair daqui.

Ela tentou agarrar-me pela mão, mas afastei-me.

Saí do hospital sem saber para onde ir. Liguei à Inês, mas não consegui dizer nada. Fui andando pelas ruas da cidade até me sentar num banco do Jardim da Estrela. Chorei como há muito não chorava.

No dia seguinte, voltei ao hospital. A minha mãe estava mais fraca ainda, mas sorriu ao ver-me.

— Desculpa ter-te contado assim… mas achei que tinhas o direito de saber.

Sentei-me ao lado dela, sem saber como começar.

— Quem é o meu pai então?

Ela hesitou novamente.

— Chama-se Joaquim. Era colega meu na escola primária… nunca mais soube dele depois daquele verão.

Fiquei em silêncio. O vazio dentro de mim era quase insuportável.

Nos dias seguintes, tentei concentrar-me no casamento, mas tudo parecia sem sentido. A Inês percebeu logo que algo estava errado.

— Leonardo, fala comigo. O que se passa?

Contei-lhe tudo entre lágrimas e soluços. Ela abraçou-me forte.

— Não és menos tu por isso. És o homem com quem quero casar — sussurrou-me ao ouvido.

Mas eu sentia-me perdido. Comecei a faltar ao trabalho, deixei de falar com amigos. Só pensava na minha mãe e naquela verdade que me roubava o chão.

Uma noite, enquanto revia álbuns antigos em casa da minha mãe, encontrei uma carta escondida entre as páginas de um livro de poesia. Era do tal Joaquim:

“Maria do Carmo,
Nunca tive coragem de ficar ao teu lado como devia. Sei que vais criar esse menino com todo o amor do mundo. Perdoa-me por não ser homem suficiente para assumir as minhas responsabilidades. Espero que um dia ele saiba quem é realmente e que me possa perdoar também.
Joaquim”

As lágrimas caíram-me pelo rosto sem controlo. Senti pena daquele homem desconhecido e da minha mãe, presa entre escolhas impossíveis.

No hospital, sentei-me junto à cama dela e li-lhe a carta em voz alta. Ela chorou baixinho.

— Sempre quis proteger-te da dor… mas acabei por te magoar ainda mais.

Agarrei-lhe a mão com força.

— Magoaste porque me amas. Mas agora preciso de saber quem sou eu realmente…

Ela sorriu tristemente.

— És meu filho. Isso nunca muda.

Os dias passaram devagar. A saúde dela piorava e eu sentia cada vez mais urgência em encontrar respostas para perguntas que nem sabia formular bem.

Quando finalmente chegou o dia do casamento, tudo parecia diferente do que tinha imaginado. A Inês insistiu para fazermos uma cerimónia pequena no jardim do hospital, para que a minha mãe pudesse estar presente nem que fosse por uns minutos.

Vesti o fato às pressas no quarto dos médicos enquanto ouvia os risos nervosos da Inês ao telefone com a minha irmã Sofia, que tratava das flores improvisadas compradas na florista da esquina.

Quando entrei no jardim improvisado, vi a minha mãe numa cadeira de rodas rodeada pelos poucos familiares próximos. Os olhos dela brilhavam de orgulho e tristeza ao mesmo tempo.

Durante os votos, olhei para ela e percebi finalmente: família não é só sangue ou segredos guardados; é quem fica quando tudo desaba à nossa volta.

Depois da cerimónia, sentei-me ao lado dela e ficámos em silêncio durante muito tempo, apenas de mãos dadas.

Poucos dias depois ela partiu serenamente durante a noite.

Agora olho para trás e pergunto-me: quantos de nós vivem vidas inteiras sem conhecerem toda a verdade sobre quem são? E será que estamos preparados para perdoar quem amamos quando descobrimos os seus segredos mais profundos?