O Avô Que Ia Ser Pai Outra Vez: Entre o Passado e o Futuro de Uma Família Portuguesa
— Não me mintas, Joaquim. Por favor, não me mintas outra vez! — gritei, a voz embargada, enquanto as minhas mãos tremiam tanto que mal conseguiam segurar a chávena de café. O cheiro forte do café acabado de fazer misturava-se com o amargo da suspeita que me corroía há meses.
Joaquim olhou-me, olhos baixos, as rugas vincadas pelo tempo e pelo peso do segredo. O silêncio dele era mais ensurdecedor do que qualquer grito. Estávamos juntos há trinta e dois anos. Trinta e dois anos de rotinas, de filhos criados, de netos a correrem pela casa ao domingo. E agora, tudo aquilo parecia prestes a desmoronar-se.
— Maria do Carmo… — começou ele, a voz rouca — Não é fácil explicar…
— Não é fácil explicar? — interrompi, sentindo as lágrimas a ameaçarem saltar-me dos olhos. — Como é que explicas que vais ser pai outra vez? Que aquela rapariga, a enfermeira nova do centro de saúde, está grávida de ti?
O silêncio caiu sobre nós como uma manta pesada. O relógio da cozinha marcava as seis e meia da manhã. Lá fora, o sol ainda não tinha nascido, mas dentro de mim já era noite cerrada.
Lembro-me de quando conheci o Joaquim. Eu tinha vinte anos, ele vinte e cinco. Trabalhava na padaria do meu pai em Vila Nova de Gaia. Era um homem bonito, trabalhador, com um sorriso fácil e um jeito para contar histórias que me fazia rir até às lágrimas. Casámo-nos cedo, tivemos dois filhos — o Rui e a Filipa — e achámos que a vida era simples: trabalhar, criar os filhos, pagar as contas e esperar pelos domingos em família.
Mas a vida nunca é assim tão simples.
Nos últimos anos, depois de nos reformarmos, comecei a notar pequenas mudanças. O Joaquim estava mais calado, saía mais vezes sozinho, dizia que ia ao café ou à farmácia buscar os medicamentos para a tensão. Eu quis acreditar. Quis mesmo. Mas depois vieram os telefonemas estranhos, as mensagens apagadas no telemóvel dele, os sorrisos forçados quando eu perguntava onde tinha estado.
A gota de água foi quando vi a enfermeira Ana Rita a sair do carro dele à porta do centro de saúde. Ela tinha vinte e oito anos. Era bonita, cheia de vida, com aquele jeito doce de falar com toda a gente. Senti-me velha e ridícula ao lado dela.
— Diz-me só uma coisa — pedi-lhe nesse pequeno-almoço gelado — Tu amas essa rapariga?
O Joaquim hesitou. Olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Não sei… — murmurou ele. — Foi um erro. Um erro grande.
— Um erro? — ri-me, amarga. — Um erro que vai nascer daqui a uns meses e chamar-te pai!
Levantei-me da mesa sem saber para onde ir. Fui até ao quarto dos fundos, onde guardávamos as fotografias antigas. Sentei-me no chão frio e comecei a folhear os álbuns: o nosso casamento na igreja da aldeia, os batizados dos nossos filhos, as férias em Vila Praia de Âncora quando ainda éramos jovens e felizes.
O Rui ligou-me nessa tarde.
— Mãe? Está tudo bem? — perguntou ele, sempre atento ao tom da minha voz.
— Está… está tudo bem — menti.
Mas não estava nada bem. Como é que se conta aos filhos adultos que o pai deles vai ter outro filho? Que o avô dos seus filhos vai ser pai outra vez?
No domingo seguinte, reuni coragem para contar à Filipa. Ela veio cá a casa com o marido e os miúdos.
— Mãe, estás tão calada… — disse ela enquanto ajudava a pôr a mesa.
— Filipa… preciso de te contar uma coisa — comecei, sentindo o coração aos pulos no peito.
Contei-lhe tudo. Ela ficou branca como a cal das paredes.
— O pai… com aquela enfermeira? — sussurrou ela. — Mas… mas ele tem idade para ser avô dela!
Chorámos juntas na cozinha enquanto os miúdos brincavam na sala sem perceberem nada do que se passava.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. O Rui ficou furioso com o pai. Não lhe falou durante semanas. A Filipa chorava sempre que me ligava. A minha irmã Margarida veio cá a casa todos os dias para me apoiar.
— Maria do Carmo, tu não tens culpa nenhuma disto! — dizia ela, apertando-me as mãos com força.
Mas eu sentia-me culpada. Culpada por não ter visto os sinais antes. Por ter deixado o amor morrer devagarinho sem fazer nada para o salvar.
O Joaquim tentou falar comigo várias vezes.
— Maria do Carmo… eu errei. Mas não quero perder-te. Não quero perder a nossa família.
— Já pensaste no que vai ser daqui para a frente? — perguntei-lhe um dia, exausta de tanto chorar. — Vais ser pai de um bebé quando já és avô! Vais dividir-te entre duas famílias? Achas isso justo?
Ele não soube responder.
As pessoas da vila começaram a cochichar à nossa passagem. A notícia espalhou-se depressa: “O Joaquim da padaria vai ser pai outra vez!” Senti vergonha como nunca tinha sentido na vida. Deixei de ir ao café, deixei de ir à missa ao domingo. Até as compras passei a fazer no supermercado da cidade vizinha para evitar olhares e comentários.
A Ana Rita tentou falar comigo uma vez à porta do centro de saúde.
— Dona Maria do Carmo… eu não queria magoá-la…
Olhei-a nos olhos e vi ali uma miúda assustada, tão perdida quanto eu.
— Ninguém quer magoar ninguém — respondi-lhe com voz trémula — mas às vezes magoamos sem querer…
O tempo foi passando devagarinho. O Joaquim ia ver a Ana Rita às escondidas; eu fingia não saber. Os meus filhos tentavam manter alguma normalidade pelos netos, mas havia sempre um silêncio estranho nos almoços de domingo.
Quando o bebé nasceu — uma menina chamada Matilde — senti uma mistura estranha de raiva e ternura. Vi o Joaquim pegar nela ao colo com lágrimas nos olhos e percebi que ali estava uma parte dele que eu nunca ia conseguir odiar completamente.
Um dia sentei-me com ele na varanda ao fim da tarde.
— Achas que algum dia vou conseguir perdoar-te? — perguntei-lhe baixinho.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:
— Não sei… Mas espero que sim. Porque eu nunca deixei de te amar, Maria do Carmo. Só me perdi pelo caminho.
Ainda hoje não sei se acredito nele ou não. A vida ensinou-me que o amor é feito de escolhas difíceis e perdões impossíveis.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem dramas como este atrás das cortinas fechadas? E será que algum dia conseguimos mesmo perdoar quem mais amamos?