O Apartamento Que Nunca Mais Foi Meu
— Rui, precisamos conversar. — A minha voz saiu mais dura do que eu queria, mas já não conseguia esconder a tensão. Estávamos sentados à mesa da cozinha, o relógio marcava quase meia-noite. Joana, a mulher do meu filho, olhava para o chão, mexendo no chá frio.
Rui suspirou, cansado. — Mãe, se é sobre o apartamento outra vez…
— É sobre o apartamento, sim! — interrompi, sentindo o coração apertar. — Já passou um ano. Era esse o combinado. Eu e o teu pai precisamos daquele espaço.
O silêncio caiu pesado. Lembrei-me de quando tudo começou. Rui e Joana tinham acabado de casar e estavam aflitos com as rendas em Lisboa. O nosso apartamento em Setúbal estava vazio desde que a minha mãe morreu. Era espaçoso, com vista para o rio, e sempre foi o meu refúgio de infância. Ofereci-lhes as chaves com orgulho e esperança de os ver crescer juntos.
— Só até arranjarem algo vosso — disse-lhes na altura, sorrindo. — Um ano passa num instante.
Mas agora, um ano depois, nada tinha mudado. Rui arranjou um trabalho precário numa loja de informática; Joana dava explicações de inglês. O dinheiro nunca chegava para nada. E eu e o António, o meu marido, começávamos a precisar do apartamento para irmos para mais perto do hospital — ele estava doente do coração e as viagens diárias estavam a matá-lo aos poucos.
— Mãe, não temos para onde ir — murmurou Rui, finalmente. — As rendas estão impossíveis. E tu sabes que o trabalho da Joana não é certo…
— E o teu pai? Achas justo ele fazer aquela viagem todos os dias? — A minha voz tremeu. — Achas justo eu ter de escolher entre o meu marido e vocês?
Joana levantou finalmente os olhos, vermelhos. — Nós tentámos procurar casas… mas ninguém nos aceita sem fiador ou três meses de caução.
Senti-me dividida entre a compaixão e a raiva. Sempre fui mãe galinha, mas agora sentia-me usada. O apartamento era meu, era do António — era a nossa segurança para a velhice. E eles… eles pareciam não perceber isso.
Naquela noite não dormi. O António tossia no quarto ao lado, e eu olhava para o teto, a pensar em tudo o que tinha dado àquele rapaz: amor, apoio, sacrifícios. Lembrei-me das noites em que ele chegava tarde da faculdade e eu lhe aquecia o jantar; das vezes em que lhe paguei viagens de finalistas porque ele não queria ficar de fora; das lágrimas quando me contou que ia casar com Joana — uma rapariga doce, mas tão insegura.
No dia seguinte, liguei à minha irmã Teresa.
— Eles não saem, Teresa! Não sei o que fazer…
Ela suspirou do outro lado da linha. — Tens de ser firme, Maria. Eles nunca vão sair se não os obrigares.
— Mas são o meu filho…
— E tu és mãe dele, não empregada dele! — respondeu ela, dura.
Comecei a notar pequenas mudanças em mim: irritava-me com facilidade; chorava sozinha na casa de banho; evitava falar do assunto com amigos para não sentir vergonha. O António tentava acalmar-me:
— Eles hão de arranjar solução… são novos.
Mas os meses passavam e nada mudava. O apartamento continuava ocupado; as contas continuavam a chegar; e eu sentia-me cada vez mais impotente.
Um domingo à tarde, decidi ir ao apartamento sem avisar. Levei uma tarte de maçã — desculpa esfarrapada para ver como estavam as coisas.
Quando abri a porta com a minha chave antiga, deparei-me com um cenário que me cortou o coração: caixas por todo o lado, roupa pendurada nas portas, loiça acumulada na banca. O cheiro era pesado; nada daquele lar luminoso que eu conhecia.
Joana apareceu à porta da sala, surpreendida.
— Maria! Não sabíamos que vinhas…
Olhei à volta, engolindo em seco.
— Vim só ver como estavam…
Ela corou e começou a arrumar apressadamente umas revistas.
— Desculpa a confusão… temos andado cansados.
Sentei-me no sofá antigo da minha mãe e senti uma pontada de saudade. Aquele espaço já não era meu.
Nessa noite falei com António:
— Não aguento mais isto. Sinto que perdi tudo: a casa da minha mãe, o respeito do nosso filho…
Ele apertou-me a mão.
— Temos de falar com eles outra vez. Mas desta vez… sem rodeios.
Na semana seguinte marcámos um jantar em nossa casa. Rui chegou cabisbaixo; Joana quase não falou durante toda a refeição.
No fim, António foi direto:
— Rui, Joana… precisamos mesmo do apartamento. Não é só uma questão de vontade — é necessidade.
Rui olhou para mim com olhos suplicantes.
— Pai… mãe… se nos expulsarem agora vamos para casa dos pais da Joana. Eles vivem num T2 com mais três irmãos dela! Não há espaço…
Senti um nó na garganta. Mas António manteve-se firme:
— Vocês são adultos. Têm de encontrar uma solução.
O ambiente ficou gelado. Rui levantou-se abruptamente e saiu para a varanda; Joana chorava baixinho na mesa.
Durante dias não tive notícias deles. Até que recebi uma mensagem curta:
“Mãe, vamos sair no fim do mês.”
O alívio misturou-se com culpa. Fui ao apartamento ajudar na mudança e vi Rui sentado no chão da sala vazia, cabeça entre as mãos.
— Desculpa tudo isto, mãe — murmurou ele. — Sinto que falhei contigo…
Abracei-o com força.
— Não falhaste nada… só cresceste.
Agora olho para trás e penso: será que fiz bem? Será que ser mãe é saber dizer “não” quando dói mais? Ou será que perdi algo maior ao escolher o meu próprio caminho?
E vocês? Já tiveram de escolher entre ajudar quem amam e proteger aquilo que é vosso? Como se volta a ser família depois disto?