O Apartamento da Mãe: Entre a Saudade e a Inveja

— Então é assim, Mariana? Ficas com tudo e nós ficamos a ver navios? — A voz da minha tia Rosa ecoou pela sala, carregada de mágoa e raiva. O cheiro a café frio misturava-se com o perfume antigo da minha mãe, ainda impregnado nas cortinas. Eu sentia o coração apertado, as mãos suadas, sem saber para onde olhar.

Nunca pedi nada. Nunca imaginei que um dia estaria sentada à mesa da cozinha, rodeada pelos olhares acusadores da família, a discutir o destino do apartamento onde cresci. O mesmo apartamento onde a minha mãe me ensinou a fazer arroz doce, onde me consolou nas noites em que o meu pai não voltava para casa, onde celebrámos aniversários com bolo de laranja e risos sinceros.

— Não fui eu que pedi isto — tentei explicar, a voz trémula. — A mãe deixou tudo escrito no testamento. Ela quis assim.

O meu primo Luís bateu com a mão na mesa, fazendo saltar uma chávena. — Quis assim? Ou convenceste-a tu? Sempre foste a preferida, não foi?

As palavras dele cortaram-me mais do que qualquer faca. Eu, a preferida? Eu, que passei noites em claro no hospital ao lado dela, quando os outros só apareciam para as fotografias de Natal? Eu, que abdiquei de viagens, de fins-de-semana com amigos, para cuidar dela quando o cancro voltou?

Lembrei-me da última conversa que tive com a minha mãe. Ela estava fraca, mas os olhos brilhavam com aquela determinação que sempre admirei.

— Mariana, quero que fiques com a casa. Sei que vais cuidar dela como eu cuidei. E sei que precisas de um lugar teu neste mundo.

Chorei nesse dia, não pelo apartamento, mas porque sabia que estava a perder a minha mãe. Agora chorava por outra razão: porque a família que restava me via como uma inimiga.

— Não é justo! — gritou a minha tia Rosa. — O teu irmão também tem direito! O teu primo então, sempre ajudou tanto…

Olhei para o meu irmão Pedro. Ele evitava o meu olhar, mexendo nervosamente no telemóvel. Sempre foi assim: fugia dos conflitos, deixava-me sozinha a enfrentar as tempestades.

— Pedro, diz alguma coisa — pedi-lhe, quase num sussurro.

Ele encolheu os ombros. — Não sei… Se calhar devíamos vender e dividir tudo.

Senti um nó na garganta. Vender? Aquela casa era tudo o que me restava da minha mãe. Cada canto tinha uma memória: o armário onde escondia os presentes de Natal, a varanda onde me contava histórias do tempo dela, o quarto onde me embalava quando tinha pesadelos.

— Não posso — disse finalmente. — Não posso vender isto. Não é só uma casa. É… é a nossa história.

A minha tia bufou. — História? A história é que agora ficas tu com tudo e nós ficamos sem nada!

Levantei-me da mesa, incapaz de conter as lágrimas. Fui até à varanda e olhei para as pelargónias que a minha mãe tanto amava. Estavam murchas desde que ela partiu. Senti-me tão sozinha ali fora como nunca antes.

O telefone tocou. Era o advogado da família.

— Mariana, está tudo em ordem com o testamento. A casa é tua legalmente. Mas percebo que haja tensão familiar… Se precisares de mediar alguma conversa, avise.

Agradeci em voz baixa e desliguei. Voltei para dentro e encontrei todos em silêncio, como se esperassem que eu cedesse.

— Vocês acham mesmo que eu queria isto? Acham que é fácil para mim? — perguntei, tentando controlar a voz. — Perdi a mãe há dois meses! E agora perco-vos também?

O Luís levantou-se abruptamente. — Não tens vergonha? A fazer-te de vítima…

A minha tia Rosa começou a chorar baixinho. O Pedro continuava calado, como se não estivesse ali.

— Sabem o que mais? Façam o que quiserem — disse eu, já sem forças. — Mas não me peçam para apagar as memórias da minha mãe só porque vocês querem dinheiro.

Saí de casa e fui dar uma volta pelo bairro. Cada rua tinha um pedaço da minha infância: o café onde comprávamos bolas de Berlim ao domingo, o jardim onde aprendi a andar de bicicleta, a escola primária onde a minha mãe me esperava à porta todos os dias.

Sentei-me num banco do jardim e chorei tudo o que tinha para chorar. Senti raiva da injustiça, tristeza pela solidão e medo do futuro. Como é possível que uma herança transforme uma família em estranhos?

Nos dias seguintes, ninguém me ligou. O silêncio era pesado como chumbo. Tentei ocupar-me: limpei a casa, tratei das flores da varanda, folheei álbuns antigos à procura de consolo.

Uma tarde, encontrei uma carta da minha mãe escondida numa gaveta:

“Minha querida Mariana,
Se estás a ler isto é porque já não estou aí contigo. Quero que saibas que te deixo esta casa porque confio em ti para manter viva a nossa história. Não deixes que ninguém te faça duvidar do teu valor ou do nosso amor. A família nem sempre entende as nossas escolhas, mas tu sabes no teu coração o que é certo.
Com amor,
Mãe”

Chorei ao ler aquelas palavras. Senti-me abraçada por ela mais uma vez.

Passaram-se semanas até receber uma mensagem do Pedro:

“Desculpa por não ter dito nada naquele dia. Sei o quanto esta casa significa para ti… Se precisares de ajuda para arranjar as janelas ou pintar alguma coisa, diz.”

Respondi-lhe com um simples “Obrigada”. Talvez houvesse esperança para nós dois.

A tia Rosa nunca mais falou comigo. O Luís também não. Ouvi dizer que andam a dizer pela aldeia que sou gananciosa, que roubei o pouco que havia para dividir.

Mas eu sei a verdade. Sei o preço que paguei por este apartamento: noites sem dormir, lágrimas escondidas, solidão profunda.

Hoje sento-me na varanda ao fim da tarde e falo baixinho com as pelargónias:

— Achas que algum dia eles vão perceber? Que vão entender que isto nunca foi sobre dinheiro?

E vocês? Já passaram por algo assim? O que fariam no meu lugar?